“Uma casa chamada Brasil” – Correio Braziliense – Ministro Marco Aurélio
Marco Aurélio
Suponhamos, caro leitor, que a sua casa esteja precisando de urgente e profunda reforma. Goteiras, infiltrações e rachaduras espalham-se perigosamente por todos os cantos. Você deduz que alguma coisa vai mal na própria estrutura da edificação. Por isso, insuficientes lhe parecem emendas paliativas aqui e acolá; não bastam meros reparos superficiais, à guisa de torná-la mais vistosa ou comercialmente atraente, até porque você não pretende vender a ampla e preciosa morada. O lugar é ótimo e a intenção é residir ali até o fim de seus dias. Além de necessária, a reforma valorizará o imóvel, situado num ponto cobiçado. É preciso, todavia, agir rapidamente, porquanto o bem-estar dos moradores – e dos vizinhos – está em risco, e quanto mais adiada essa imprescindível operação, piores se tornarão os estragos, exigindo consertos cada vez mais dispendiosos, estratégia mais eficiente e, assim, maior determinação e perícia dos responsáveis pelo serviço.
O problema se agrava diante da constatação de que não há dinheiro para empreitada de tal monta. A obra terá de ser financiada, e também nisso você percebe dificuldades. É que a capacidade de endividamento alcançou o limite, e os bancos sabem disso. Ademais, há de se conseguir alvarás, licenças, enfim, as autorizações cabíveis, a concordância das autoridades constituídas, porque, afinal de contas, você vive numa cidade em que se respeita o Estado de Direito, e, portanto, cumprem-se as leis.
Diante de equação com tantas variáveis, você conclui que o primeiro passo para obter êxito nesse projeto é bem escolher e, a seguir, contratar um excelente administrador para tocar a obra. Aí você começa a imaginar o perfil dessa pessoa e decide que deve levar em conta, igualmente, atributos técnicos e morais, porque entende serem ambos essenciais para alcançar o objetivo almejado. Passa a enumerá-los e, é claro, considera que é fundamental o conhecimento técnico, pois, sem o inteiro domínio dos problemas que atingem o imóvel, não se chegará à solução adequada. Dada a premência da situação, você resolve conciliar o fator “experiência” com a qualidade dos serviços oferecidos, porque compreende ser imprescindível uma boa assessoria, aliada, sem dúvida alguma, à vontade do candidato à vaga de vencer o desafio, não pela vaidade de enriquecer o currículo, mas pela importância da missão. A um só tempo, você pondera que não deve abrir mão do quesito “referência”, já que, nesse caso, o passado conta muito. O postulante ao emprego há de ter uma ficha limpa. Ser honesto, inteligente, sociável, cordato, sério e criativo é o mínimo que se pode esperar de alguém que, ao lidar com tantas questões difíceis, enfrentará alto grau de estresse no dia-a-dia. Você continua a relacionar mais algumas qualidades inarredáveis: bom senso, sinceridade, amor pela causa e alta capacidade de negociação, tanto com os operários, quanto com os banqueiros, pilares de grande relevância na reconstrução bem sedimentada da moradia. Acresce a esse rol a necessidade de bom humor e flexibilidade, bem como de firmeza, principalmente na hora de fechar contratos com os fornecedores.
Assim, aos poucos, você vai compondo o retrato desse administrador ideal, mas nem por isso messiânico ou superpoderoso. Em vez de habilidades superiores, você pensa em liderança, credibilidade, capacidade de articulação, carisma e bom relacionamento com toda a comunidade, de modo a conseguir as melhores pessoas para trabalhar na obra e, dessa maneira, aproveitar ao máximo os recursos disponíveis, a fim de recuperar o prédio com eficiência, o que inclui, é óbvio, rapidez e economia.
É preciso atentar também para os operários. A responsabilidade por escolhê-los e contratá-los é somente sua, não podendo o administrador interferir de maneira alguma. Daí por que todo o cuidado é pouco, já que de nada adianta ter um excelente chefe se a mão-de-obra é tecnicamente ruim e moralmente duvidosa. Já pensou se, de tão despreparados, os obreiros não conseguirem discernir prioridades? O que será se cada um quiser cuidar apenas do trabalho a fazer no âmbito do cômodo a si designado, sem olhar o todo? E se houver disputa pelos materiais, cada qual querendo terminar primeiro e a qualquer custo a parte que lhe foi atribuída, fixando-se apenas no próprio interesse, a fim de garantir o quinhão de elogios pessoais e, desse modo, assegurar uma vaga no próximo canteiro de obras? Por isso, é de suma importância que você examine os trabalhadores de per si, indagando-lhes quais os reais propósitos que os movem, que tarefas – e os métodos usados para tanto – levaram a cabo antes, com sucesso, como se conduziram eticamente em face das vicissitudes cotidianas. Porque caráter, sem dúvida, é predicado imprescindível qualquer que seja a situação. Cumpre procurar descobrir, com minúcia, a lisura das intenções por trás do pedido de emprego. E aqui também é fundamental o gosto pelo projeto, a aptidão para o ofício, o conhecimento e o respeito às regras postas no contrato, bem como a habilidade com os instrumentos a serem manejados, porquanto uma equipe incompetente, desagregada e não comprometida com o objetivo comum tão meticulosamente traçado inviabiliza o esperado bom desempenho do administrador, que, afinal, não é um mágico, nem conta com dons extraordinários. Enfim, tanto a linha de montagem quanto a de comando terão de ser de primeira, porque você sabe como é complicado e penoso desfazer-se de alguém do grupo. Sofrem com o desgaste dessa baixa o administrador, os operários e os moradores. Os efeitos dessa ruptura repercutem na qualidade dos serviços, atrasam e encarecem a obra e, acima de tudo, afetam bastante o moral de todos – se é que se sentem de fato envolvidos com o projeto -, pois é duro ter de admitir um erro tão crasso em se haver permitido a entrada de uma pessoa indigna nesse que deveria ser o mais seleto conjunto de homens honrados, haja vista o grande valor da missão em foco.
Arrumada a casa, seguras as instalações, confortáveis os moradores, virá a hora da bonança, quando o sono far-se-á mais tranqüilo, sem o pavor do desmoronamento iminente, qualquer que seja o terremoto que porventura aconteça.
Aqueles que já passaram pelos percalços inerentes a situações similares sabem da angústia que é precisar decidir acertadamente de primeira, sem direito a uma segunda chance. Pois bem, alguns critérios ajudam, e muito, na hora de escolher, mormente em se tratando de quadro ambíguo. Ao leitor já ocorreu, com certeza, a analogia que se intentou aqui fazer. Sim, com as devidas reservas, cuida-se das eleições que hoje incendeiam o País, mediante as quais democraticamente credenciaremos, para nos representar, os membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo, os administradores e obreiros a quem competirá levar a termo, e a bom termo, sem sombra de dúvida, as reformas estruturais de que o Brasil há muito necessita e que até hoje não foram possíveis ante as dificuldades reinantes. A sugestão é que cada eleitor, dominando o momento e a importância do voto de confiança a ser dado, determine os atributos que lhe são caros e, a partir daí, proceda conscientemente à escolha das mais decisivas para o futuro do País. É chegada a hora. Quem dimensiona o valor da mansão que habitamos a entregará aos homens certos. Ou, para usar uma outra metáfora hoje tão em voga, sob uma assustadora tempestade, só os grandes timoneiros, liderando uma tripulação idônea e compromissada com o alvissareiro destino da nau, saberão conduzi-la ao melhor e mais seguro porto.
Marco Aurélio Mendes de Farias Mello é Presidente do Supremo Tribunal Federal.