Relator vota pela não aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010
O ministro Gilmar Mendes votou pela não aplicação da Lei Complementar (LC) nº 135/2010, mais conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, às eleições gerais do ano passado, por entender que o artigo 16 da Constituição Federal (CF) de 1988, que estabelece a anterioridade de um ano para lei que altere o processo eleitoral, é uma cláusula pétrea eleitoral que não pode ser mudada, nem mesmo por lei complementar ou emenda constitucional.
O voto foi proferido no julgamento, pelo Plenário da Suprema Corte, do Recurso Extraordinário (RE) 633703, interposto por Leonídio Henrique Correa Bouças, candidato a deputado estadual pelo PMDB de Minas Gerais nas eleições do ano passado, que teve confirmada, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o indeferimento de sua candidatura. A Corte atribuiu repercussão geral à matéria.
Embora lembrasse que a LC 135 nasceu de iniciativa popular, com a coleta de aproximadamente 1,6 milhão de assinaturas, tendo por objetivo extirpar a corrupção da vida política do país, o ministro Gilmar Mendes ponderou que “a iniciativa popular não tem o condão de violar a Constituição”. “Assim”, observou, “temos que nos pronunciar contra a maioria. Mas esta é a missão da Corte: aplicar a Constituição, ainda que contra a opinião majoritária”.
Ao contraditar argumentos de que, se decidisse contra a vigência imediata da LC 135, a Suprema Corte viria a compactuar com a corrupção, ele disse que “é dever desta Corte esclarecer o papel que cumpre na defesa da Constituição. O catálogo dos direitos fundamentais (entre os quais o da anterioridade eleitoral) não está à disposição. Cabe ao Supremo esta pedagogia diária dos direitos fundamentais”.
Jurisprudência
O ministro apoiou seu voto em jurisprudência firmada pela Suprema Corte no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3685, relatada pela ministra Ellen Gracie, por ele considerada “um marco na interpretação do artigo 16 da CF”. Segundo ele, aquela foi a primeira vez em que se impediu a vigência de um dispositivo legal (a Emenda Constitucional – EC – 52/2006) editado em período inferior a um ano das eleições.
Naquele julgamento, conforme lembrou, a Suprema Corte mudou a jurisprudência que vinha aplicando até então, ao dar interpretação conforme a Constituição para fixar entendimento de que a Emenda Constitucional nº 52/2006, que extinguiu a chamada verticalização das coligações partidárias, somente poderia ser aplicada com base no artigo 16 da Carta Magna, ou seja, após o transcurso de um ano da data de sua vigência.
No mesmo sentido ele citou a decisão do Plenário de confirmar liminar dada pela ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha na ADI 4307, em que suspendeu dispositivo da Emenda Constitucional nº 58/09, que determinava a vigência, já para as eleições de 2008, de alteração no cálculo dos números de vereadores.
Jurisdição constitucional e democracia
Endossando tese do jurista austríaco Hans Kelsen, segundo o qual o papel central num sistema democrático moderno é a jurisdição constitucional e a garantia da constitucionalidade das leis é, também, garantia do direito das minorias diante das maiorias, o ministro Gilmar Mendes disse que admitir a inclusão de novas normas eleitorais fora do prazo previsto no artigo 16 da CF é abrir brechas para as maiorias tentarem criar novos obstáculos às minorias.
Ele lembrou que a expressão “processo eleitoral”, contida no artigo 16 da Constituição, deve ser interpretada num conceito mais amplo, pois esse processo, na verdade, tem início um ano antes das eleições, quando os potenciais candidatos devem providenciar o devido domicílio e, também, sua filiação eleitoral. Esta que, segundo ele, é a primeira fase do processo eleitoral, vai até o registro dos candidatos. A segunda fase é a que transcorre durante a campanha e até a eleição e a última, por fim, se dá com a proclamação do resultado, a diplomação e posse dos eleitos.
Assim, segundo ele, a LC 135/2010, editada na véspera da data de registro dos candidatos, afetou não só a programação dos candidatos e partidos, mas também o próprio eleitor, quando o processo eleitoral já se encontrava em pleno andamento.
Ele lembrou que Leonídio Bouças só teve negado o registro de sua candidatura pelo TSE após as eleições, em que obteve mais de 41 mil votos, o suficiente para ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Condenação sem trânsito
O ministro observou, também, que a LC 135, na verdade, manda aplicar a condenação, sem trânsito em julgado, da sentença condenatória de candidatos com processos em curso contra eles, quando condenados por colegiado (em segundo grau). Com isso, contraria preceito contido no artigo 5º, inciso LVII da CF, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória penal condenatória”.
Assim, segundo ele, se se somar a duração do processo com o tempo de perda dos direitos políticos imposta ao candidato, a condenação acaba se estendendo, em alguns casos até em caráter perpétuo. “Isto é de uma gravidade para a qual eu ainda não tinha atentado”, observou o ministro.
O caso
No Recurso Extraordinário (RE) 633703, hoje julgado, Leonídio Henrique Correa Bouças, candidato a deputado estadual pelo PMDB de Minas Gerais nas eleições do ano passado, questiona acórdão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, ao desprover recurso ordinário lá interposto contra decisão do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE/MG), indeferiu o registro de sua candidatura.
O indeferimento do registro decorreu em razão da condenação de Leonídio Bouças, em 2002, por improbidade administrativa, com base no artigo 1º, inciso I, alínea “L”, da Lei Complementar nº 64/1990, com redação da LC nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ-MG) por improbidade administrativa.
Ex-secretário do município de Uberlândia, ele teria utilizado a máquina pública municipal em favor de sua candidatura a deputado estadual. A condenação incluiu a perda dos seus direitos políticos, multa, ressarcimento dos danos causados ao erário e restituição dos bens irregularmente incorporados a seu patrimônio pessoal.
O caso chegou ao STF depois de esgotados pela defesa do então candidato todos os recursos possíveis. Depois de ver rejeitado seu registro em primeiro grau, ele recorreu ao TRE/MG, que confirmou a decisão, apoiado, também, em parecer do Ministério Público Eleitoral. Embargos de Declaração interpostos contra essa decisão foram acolhidos pelo TRE tão somente para aclarar sua decisão anterior, mantida a impugnação com base na LC 135/2010.
Em setembro de 2010, o caso chegou ao TSE, onde o ministro Aldir Passarinho negou seguimento ao recurso e manteve decisão do TRE. Recurso interposto contra essa decisão foi indeferido pelo ministro Hamilton Carvalhido, o qual recordou que a condenação do candidato ocorreu por colegiado (TJ-MG).
Recurso de agravo regimental interposto contra essa decisão no próprio TSE foi desprovido, sendo mantida a inelegibilidade. O TSE firmou entendimento de que a LC/135 já se aplicava às eleições de 2010.
STF
No RE interposto no STF, o então candidato alega que a LC 135/2010 não pode ser aplicada às eleições de 2010, em obediência ao princípio da anterioridade da lei eleitoral, previsto no artigo 16 da Constituição Federal (CF). Sustenta, ainda, que o acórdão recorrido do TSE violou o artigo 5º LVIII, bem como os artigos 15, inciso V, e 37, parágrafo 4º, todos da CF. Tais artigos dispõem sobre a suspensão dos direitos políticos por improbidade administrativa, porém o candidato sustenta que ela só pode ocorrer após trânsito em julgado, o que, segundo ele, ainda não ocorreu.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se pelo desprovimento do RE, ante o entendimento de que a LC 135 já era aplicável às eleições de 2010. Baseou-se em jurisprudência firmada pela Suprema Corte no julgamento do Recurso Extraordinário 631102, em que o STF manteve decisão do TSE que indeferiu o registro da candidatura do ex-governador do Pará Jader Barbalho para o cargo de senador da República.
Leia a íntegra do voto do relator (sem revisão).
FK/CG