Programa Observatório da Imprensa, da TVE (RJ) – Ministro Marco Aurélio

18/06/2002 18:02 - Atualizado há 12 meses atrás

Entrevista com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio, veiculada no programa Observatório da Imprensa, da TVE, em 18.06.2002.


Lúcia Abreu – Boa noite. O programa de hoje é gravado. Este Observatório volta ao debate sobre a relação da mídia com o Poder Judiciário, e a recente onda de liminares cerceando o dever de informação. Vamos à entrevista especial, feita pelo jornalista Alberto Dines, em Brasília.


Alberto Dines – Essa entrevista foi gravada, em Brasília, quatro dias antes do desaparecimento do repórter Tim Lopes. Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Estamos, hoje, em Brasília, na Praça dos Três Poderes, centro nevrálgico da República, e vamos ouvir um dos chefes desses Poderes, aliás um Bipresidente, Marco Aurélio de Mello.


Presidente, bem-vindo ao nosso programa. Vamos tratar hoje de assuntos que dizem respeito à sua e à nossa área, também, que é a imprensa. O Senhor já foi criticado, inclusive, penso até, por mim, porque falava demais e se manifestava sobre tudo, até pela cor da camisa da seleção.
Com o passar do tempo, acho que o senhor transformou-se, não diria num oráculo, mas num juiz do Velho testamento que dirimia todas as pendências, dúvidas, e transformou-se numa referência. E temos um problema, neste momento em que gravamos esse programa, que diz respeito ao Judiciário e à Imprensa.
Estou, neste instante, impedido de comentar, divulgar, denunciar, um ato sensório, que está praticamente uma semana em vigor. Trata-se de decisão de uma desembargadora de São Paulo, impedindo que, em todos os meios de comunicação do Brasil, inclusive internet, o assunto fosse comentado. Sei que o Senhor não pode se manifestar, porque é o supremo juiz, mas, em tese, é uma situação extremamente inédita. O que o Senhor puder falar sobre o assunto nos será interessante ouvir.


Ministro Marco Aurélio – É uma satisfação enorme manter esse contato, Alberto Dines, e devo dizer que me sinto muito à vontade na abordagem da matéria, porque semana passada compareci a um simpósio, em Brasília, sobre Imprensa e Democracia, e tive a oportunidade de dizer que se colocam, aí, valores em jogo.


Preciso é interpretar-se a Constituição Federal, conciliando as diversas normas. Temos como medula da própria democracia, do próprio estado democrático de direito, a liberdade de imprensa. Há um direito-dever da imprensa de informar e veicular  fatos, para o acompanhamento pela sociedade. Esse é o valor maior. É o interesse público sobrepondo-se ao individual, principalmente quando o interesse individual tem como titular o homem público, que é uma vitrine, um livro aberto, ao ingressar na vida pública, ao transformar-se, em si, em um servidor dos contribuintes, e a eles precisa prestar contas.
A imprensa tem um papel fundamental, no esclarecimento do cidadão e da sociedade. Tem, como disse, não só, o direito, mas o dever deversar os fatos, fazendo, é claro, com honestidade de propósito. É possível que não veicule uma verdade objetiva. Muito difícil até mesmo de ser balizada. O que é a verdade? Desde que não se tenha a má-fé, desde que não se verse algo que, a priori, já se sabe é uma inverdade, evidentemente, não se pode chegar a um cerceio.


Como ficamos numa situação dessas?  Há uma censura instalada,  não sei se algum recurso será impetrado para suspendê-la. Mas há uma censura e, num dos nossos últimos programas, tratamos disto; quer dizer,  é uma situação absolutamente  kafkiana,  como disse,  no programa ao vivo, em que estou proibido de tratar de um assunto e, ao tratar deste, nada acontece. Quer dizer, o próprio castigo previsto, tenho a impressão de que nem se pode aplicá-lo, porque o programa já foi ao ar.


Foi ao ar e já houve a divulgação. Precisamos refletir sobre essa matéria. A partir de 1988, com a Constituição, em que Ulisses disse ser uma Constituição Cidadã, passamos a ter outros ares constitucionais, aí, a liberdade de expressão faz-se presente. Claro, podemos ter alguns equívocos na área do Judiciário.


 A Justiça é obra do homem, por isso ela é passível de falha. Por isso temos, até mesmo, um sistema instrumental de recursos para atacar-se uma decisão, que se mostre a discrepar do que está estabelecido constitucionalmente. Creio que até esse nosso diálogo, essa entrevista,servirá a que os colegas de sacerdócio reflitam um pouco sobre os inconvenientes de se vedar, antecipadamente, a veiculação de notícias.


Isso, sobretudo numa época como a que vivemos, ocorre numa temporada, a “saison” eleitoral. Cria-se ainda mais quando um candidato embarga previamente uma notícia uma tensão em torno até da lisura do processo; expõe-se suspeitas sobre o processo e em cima dos jornalistas que devem reportá-lo. É uma situação extremamente grave. Não me lembro de ter vivido outra durante o regime democrático brasileiro.


É incrível que ocorra. O perigo maior está na ocorrência desta quadra, quando se avizinham eleições. O que se quer? Quer-se conhecer os perfis dos candidatos, as idéias e o passado, que serão amanhã os nossos dirigentes.


Presidente, nos Estados Unidos, um dos paradigmas do sistema democrático, com uma Constituição de duzentos anos, dirimiu-se esse problema, previamente, com a primeira emenda a proibir qualquer outra que venha a cercear o direito de expressão, de opinião. Isso está mais ou menos embutido na nossa Constituição, não como os “founding fathers” fizeram nos Estados Unidos. Mas, como poderemos resolver esse problema, daqui para frente?


Buscando a maior eficácia possível do texto constitucional, temos, realmente, no rol das garantias individuais, a inviolabilidade da intimidade do cidadão. Mas o dispositivo prevê o direito de resposta; e mais, a responsabilidade penal e cível pelos danos morais e materiais. Indaga-se: o que pressupõe o direito de resposta?


Algo já ocorrido, e está assegurado no artigo 220 da Constituição Federal, a liberdade, portanto, de veicular-se uma informação que se tem, pelo menos até que venha demonstração em contrário, como verdadeira. É um sistema mesclado, equilibrado, com responsabilidade, evidentemente. Um jornalista não deve criar, nem deturpar, deve agir com fidelidade absoluta aos fatos conhecidos, acreditando que sejam verdadeiros. Brecar-se, em si, a notícia em torno desses fatos, é um retrocesso; é uma época da qual não temos saudade.


O caso americano, para encerrarmos, do Presidente Clinton, em que o processo nem estava aberto, ainda era uma preliminar, foi inteiramente divulgado com toda transparência, ele aceitou e não lhe ocorreu, em nenhum momento, embargar a publicação do caso.


Sem dúvida. A nossa ConstituiçãoFederal observa a ordem natural das coisas. O que se presume: O excepcional,o extraordinário? Não, o razoável, o que ocorre no dia-a-dia, daí o princípio da não-culpabilidade.


A Imprensa, a princípio, é bem intencionada.


Sem dúvida, e acreditamos que o seja na veiculação de idéias. Claro que, às vezes, temos algumas injustiças. Eu mesmo já fui alvo de injustiças. Indaga-se: Qual foi a minha reação? Cheguei a notificar sequer um jornalista? Não, muito menos a entrar com uma ação penal ou mesmo uma ação cível visando indenização, mesmo porque a minha honra não tem preço.


Havia uma história em que um indivíduo procurou o Rei Salomão a respeito dessa questão de dano moral, e disse: olha, quando uma pessoa me rouba um bem ou a bolsa com dinheiro, pouco perco, porque o que perdi, aqui, vai enriquecer a outra pessoa que me roubou, então esse patrimônio não será alterado, mas quando eu for ofendido na minha honra, não só perco parte da minha própria existência como não enriqueço ninguém.
 A questão do dano moral é muito preocupante, difícil, e temos de procurar caminhar na posição do equilíbrio. Preside sempre, nas nossas orientações, aquilo que procuramos afirmar como a teoria do pêndulo: o pêndulo não pode estar nem de um lado, nem de outro, tem de procurar o equilíbrio. É essa a grande busca, a meta que os juízes têm que levar em consideração.


Alguns jornalistas e as instituições estão começando a ficar preocupados com, digamos, um confronto entre esses dois poderes: o poder formal do Judiciário e o informal da Impressa. Várias pessoas estão percebendo um excessivo rigor do Judiciário contra a Impressa, seja na forma de indenizações absurdas, seja num caso como esse que saiu pela culatra, porque, a partir da censura, ganhou uma dimensão que não ganharia, se tivesse tramitado normalmente. Como o Senhor vê esse confronto do Judiciário – não quero dizer que é corporativo – com o trabalho da Imprensa?



A minha crença no Direito é inabalável. Acredito piamente que, no correr do processo, acaba prevalecendo a justiça, e a justiça é o que decorre do Direito posto, considerada, no ápice da pirâmide, a nossa Constituição Federal. É preciso que se perceba o envolvimento, como disse, de valores; e o valor maior é aquele que atende não ao interesse individual, mas ao interesse comum do povo. Os colegas, imagino todos, porque os julgo por mim mesmo, refletirão sobre essa matéria, sobre esse aparente conflito; não há conflito entre as normas constitucionais. O que precisamos é interpretar o sistema, no que é voltado na revelação de um estado democrático de direito. Não há democracia sem liberdade de Imprensa.


É importante que seus colegas, em todas as instâncias …


Não pode ser diferente.


Não sei se já lhe contei uma experiência pessoal, extremamenteintimidadora: fui processado por uma pessoa, a quem ataquei, achava que tinha razões, e na primeira audiência o juiz fez uma carga tão grande contra mim que falei: já estou julgado antes mesmo do processo.


Condenado e sem um processo.


Felizmente, há dois dias, fui inteiramente absolvido e a outra parte terá de pagar todas as custas.


Folgo em saber isso.


O juiz teve uma atitude e referiu-se “vocês da imprensa”.


Com uma generalização, colocando-se na vala comum.


O vocabulário que usei, como não é uma palavra corrente, tive o cuidado de colocar um sinônimo entre vírgulas para esclarecê-lo. Na realidade, ele não tinha razão para humilhar a corporação. Isso me marcou profundamente, foi há dois anos.


E o episódio envolvia, em si, um homem público?


Um homem público, com atuações bastantes importantes, diria, é lamentável.


Sou partidário de uma jurisprudência americana que inverte o ônus da prova. O particular, para
chegar, por exemplo, à responsabilidade de um jornal, precisa apenas provar o dano causado com a notícia. Já um homem público deve, em si, provar não apenas o dano, mas a malícia embutida no que se versou, veiculou. Tivemos esse julgamento nos Estados Unidos que é um julgamento muito emblemático em termos, como disse, de liberdade de imprensa.


Estamos falando numa questão vizinha que tangencia, a do controle social, controle externo do judiciário, como o Senhor vê essa questão e em que estamos avançando?


Precisamos, no Brasil, e já deveríamos contar com um órgão de cúpula que não esteja situado, em si, em um  tribunal, mas em Brasília, com uma composição heterogenia, formada por juízes de diversos tribunais que passe, sem o “speed corp”, a julgar certos atos da magistratura, considerados desvio de conduta. Devolvo a pergunta: por que não praticarmos inicialmente um controle interno, mas um controle efetivo.


Uma espécie de ouvidoria.


Exato, via um órgão eqüidistanteque não sofra influências deste ou daquele colegiado. Vamos começar,realmente, nessa trilha e notaremos, aí, efeitos salutares.


O que se pode fazer, depende do Judiciário?


Precisamos da aprovação, em si – agora, estamos com a  reforma do Judiciário – dessa reforma e, também, da edição da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, afinada com a Carta de 88, porque a que está em vigor guarda sintonia com a Carta pretérita e não se tem o Conselho Nacional da Magistratura, que precisa ser criado o quanto antes.


Com relação ao cidadão comum, esse que está na rua, talvez recorreu à Justiça uma vez, ou foi vítima ou por ela chamado, tem medo da Justiça, dela precisa e a ela recorre, como o Senhor vê esse cidadão?


A Justiça, com o correr dos anos,colocou numa redoma, quase uma autoproteção para os integrantes dessa Justiça não se tornarem vulneráveis numa óptica distorcida. Precisamos aproximar, não o povo do Judiciário, mas o Judiciário do povo. Estamos buscando isso. Agora mesmo tivemos a sanção da lei criando a TV Justiça, que não será TV do Judiciário, muito menos do Supremo Tribunal Federal, mas servirá à divulgação das atividades essenciais ao implemento da almejada Justiça. Isso será muito importante em termos de transparência.


Os julgamentos serão todos públicos?


Públicos,  porque a regra é a publicidade que, de certa forma,  atrai eficiência,  permite  ao cidadão
acompanhar – inclusive o direito decorre disso, do pagamento de tributos – o que vem sendo feito pelo Estado-Juiz. Isso é importantíssimo. Agora, é claro que o cidadão comum não pode, por exemplo, contratar um advogado. É preciso o Estado perceber que é hora de estruturar, como convém, a Defensoria Pública nas diversas unidades da Federação brasileira. É incompreensível, por exemplo, que São Paulo, o maior Estado da Federação, ainda não tenha a Defensoria Pública devidamente instalada, que a atividade, a defesa, a assistência jurídica e judiciária aos necessitados se faça pela Procuradoria do Estado. A Procuradoria do Estado é integrada de profissionais da advocacia que desenvolvem atividades em prol do Estado, não do necessitado, em si.


Presidente, o Senhor falou nessa TV do Judiciário, que será inaugurada em breve, com transmissão de alguns julgamentos, como ficará a nossa TV, por exemplo, fazendo referência à justiça americana, em que alguns julgamentos a mídia pode assistir, mas não pode reproduzir, ela tem que desenhar as cenas,  o acusado …


O nosso sistema é diverso. Pelo texto constitucional, as decisões devem ser fundamentadas e tomadas comportas abertas. A americana, não. Tanto que, na Suprema Corte, o que ocorre? Eles discutem em sessão secreta, exclusiva, fechada e, posteriormente, divulgam o resultado. No Brasil, é o contrário, a regra é a publicidade e de forma abrangente. Agora, quando o processo, tendo em conta interesse público, exige o sigilo, aí, sim, ele deve ser implementado. Mas isso éexcepcionalíssimo. Só tivemos, aqui, no Supremo Tribunal Federal, nesses dozeanos, um único caso, em que houve a transformação, mesmo assim, contra o meu voto, da sessão pública, em sessão secreta.


Quer dizer, toda estrutura, todo o conceito do regime brasileiro é aberto.


Aberto, franco, transparente, visível aos olhos do leigo, do cidadão comum.


Geraldo Brindeiro (Procurador-geral da República) – O Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, tem se destacado como jurista da nova geração de maiores juristas do País, tem procurado preservar os princípios constitucionais relativos, principalmente, às liberdades públicas e à igualdade. Ele, como Presidente do Supremo Tribunal  Federal, certamente, tem tido um papel relevante agora, justamente, na instalação, na aprovação, na sanção da nova lei que criou a TV Justiça, no exercício da Presidência da República. Na verdade, a realização desta nova televisão, é muito importante para o Poder Judiciário, no momento em que está havendo a reforma judiciária, a modernização do Poder Judiciário. Ele é um jurista moderno, a meu ver, preocupado com as liberdades públicas. Nesse sentido, ele tem proferido seus votos e participado dos debates no Supremo Tribunal Federal, os quais têm enriquecido a Corte, cumprindo o que, aliás, a Constituição diz sobre o contraditório e a ampla defesa, preocupado com as liberdades públicas, com o intuito de garantir o cumprimento dos princípios constitucionais e, com isso, enriquecendo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pela controvérsia que é, aliás, assegurada pela Constituição.



Marco Aurélio – O Judiciário é responsável pelo restabelecimento da paz social, momentaneamente abalada. Ele não tem mira, não tem como objetivo maior atender o interesse de “a” ou de “b”, mas preservar a segurança jurídica, a paz social. Evidentemente, é preciso que o cidadão comum saiba desse papel, o qual vem sendo desenvolvido como deve ser. É a questão, também, da imprensa. Podemos, aí, traçar um paralelo. Como temos o próprio Judiciário agindo de forma aberta, a Imprensa, mais do que qualquer outro segmento de nossa vida pública, deve ter a liberdade, esta, sim, com responsabilidade, e respondendo, como disse, por algum desvio, por algum sensacionalismo que, de forma extravagante, venha a ocorrer.


Alberto Dines – Voltando um pouquinho à imprensa, e por sugestão sua, sem entrar em detalhes, porque fala-se muito no linchamento da imprensa, de certas figuras, que, de repente, aparecem no noticiário e, aí, vão todos atrás e destroem, depois começa-se a descobrir que não era bem assim- de uma forma geral, conceitual, tem visto um pouco disso?


Se fizermos um levantamento, vamos ver que, na maioria das vezes, procede o que versado, e diria que atravessamos uma fase de enorme valia, uma fase de depuração. Não temos, hoje, mais corrupção do que tivemos no passado. Simplesmente, as coisas estão aflorando e, aí, está havendo o acompanhamento pelo cidadão, e aflorando mediante que atividade? A atividade desenvolvida pela Imprensa. Silenciamos a Imprensa e teremos um verdadeiro retrocesso, nesse avanço, ocorrido nos últimos quatro ou cinco anos, extraordinário. Não se imaginava ter-se o quetivemos com o afastamento de homens públicos de cargos importantíssimos há anos atrás. É o sinal de que as instituições, de uma forma geral, estão funcionando, e isso é muito bom em termos democráticos.


Dentro desse contexto, como o Senhor vê o Ministério Público, que é uma instituição, relativamente, nova?


Um papel vital tem o Ministério Público. Agora, em qualquer área, privada ou pública, temos excessos. E, aí, há os meios de se coibi-los. Mas o balanço é altamente positivo. Sou um entusiasta da atividade desenvolvida pelo Ministério Público de hoje, e creio que ele presta um trabalho relevantíssimo à sociedade brasileira.


O Senhor, como presidente de um dos Poderes e Presidente da República, tem contato com o cidadão comum, não aqui no prédio, mas na rua. O que o Senhor sente, as pessoas, de repente, lhe procuram, como é esse contato humano entre o supremo magistrado e o supremo cidadão?


Eu próprio abro o meu e-mail, costumo ir ao supermercado e vou com meu “mocasin”, a minha bermuda, a minha camiseta, e gosto, até mesmo, de puxar conversa com as pessoas, para perceber o que elas pensam da atual quadra vivida no Brasil. Sinto que há uma politização maior. As pessoas querem participar da vida brasileira. Estamos às vésperas de uma eleição. É preciso que cada qual perceba a envergadura do voto. Ele considerado isoladamente não tem um peso, mas ele será somado a tantos outros votos e influenciará o Brasil de amanhã.


Presidente, tem um assunto que está na primeira página de todos os jornais, é preocupação de qualquer cidadão das cidades grandes, pequenas e médias, a questão da violência, da segurança. Esse problema, é claro, tem mil implicações, inclusive sociais, desemprego, mas há um problema que me parece embutido, gostaria que o Senhor elaborasse sobre isso, o da impunidade. Muitas vezes os criminosos são pegos e desaparecem, conseguem escapar, e, aí, quando se fala em impunidade, também, tem o problema da corrupção envolvida, o que o Senhor poderia nos ensinar a respeito?


Precisamos parar, a fim de perceber a causa da delinqüência no estágio em que está atualmente. Referi-me, a pouco, ao Rio de Janeiro, e fui mal compreendido pela governadora Benedita e pelo Roberto Aguiar, um homem muito sensível, um homem público exemplar. Não critiquei o atual governo, apenas constatei um fato: quando não se ocupa um espaço, há a tendência de ele ser ocupado por terceiros. No caso das favelas do Rio de Janeiro, a ausência do Estado, prestando os serviços que deve prestar, abriu margem à atuação do delinqüente, do traficante.


Precisamos parar de pensar no País apenas econômico-financeiro. Precisamos voltar os olhos para o social, para a estagnação vivida. É incompreensível ter-se um índice, como o agora divulgado, quanto ao desemprego em São Paulo. Isso é terrível. Todos temos freios inibitórios. Então, quando o jovem – e precisamos de um milhão e seiscentos mil novos empregos, por ano, para atender a força jovem projetada no mercado; e este é desequilibrado, com oferta excessiva de mão-de-obra e escassez de emprego procura um emprego e não acha, acaba ficando vulnerável, com o flanco aberto. Há o primeiro delito, sem grande importância; daqui a pouco, ele está envolvido com um delito mais sério, chegando mesmo ao latrocínio.


O Ministério Público vem atuando na persecução criminal. O Judiciário também. Precisamos modificar o nosso Código de Processo Penal para tornar o mecanismo mais célere, para ter-se uma resposta do Estado em um tempo mais razoável. É incompreensível uma sentença condenatória, na área criminal, só transitar em julgado seis, sete, oito anos após o início da ação.


Isso depende de mais recursos?


Não, depende da vontade dos representantes do povo e dos Estados, dos Deputados e Senadores; desse agilizar a reforma de nossos Códigos. A coisa, creio, passa muito mais pela alteração da legislação comum do que pela alteração da Constituição Federal, a qual deveria ser um diploma perene, permanente, como a Constituição americana.


O Senhor já teve a oportunidade – não sei se o protocolo político permite de se dirigir ao Plenário do Congresso e fazer um apelo no sentido de estar na mão deles, os representantes?


É preciso que eles percebam o seu papel importantíssimo nesse contexto. No Judiciário, atuamos segundo a legislação em vigor. O nosso Direito é escrito. Reclama-se da morosidade do Judiciário; claro, atualmente, ainda estamos no rescaldo dos incêndios provocados pelos diversos planos econômicos. Mas as ações de hoje tendem a não ser substituídas nesse nível, nesse patamar, nesse número existente, e, portanto – cedo ou tarde, dentro de três ou quatro anos -, teremos uma Justiça bem mais célere. De qualquer forma, vamos desburocratizar o processo; vamos torná-lo mais célere, mais rápido, sem prejuízo do direito de defesa, como agora mesmo temos essa experiência maravilhosa revelada pelos Juizados Especiais de Pequenas Causas.


DEPOIMENTO: Marco Aurélio não é um juiz autômato, apegado aos precedentes. Marco Aurélio não é um juiz que singeliza, por assim dizer, as coisas, mas compreende o Judiciário em sua dupla função: a de, sem dúvida nenhuma, julgar, decidir, é uma função importantíssima porque, ao fazer isso, consolida os fundamentos do estado democrático de direito, e, também, a função didática, pedagógica. E, aí, temos o Ministro Marco Aurélio exercendo a sua função de acordo com o seu talento inato. Se examinarmos as decisões por ele proferidas ao longo de sua carreira de juiz, as quais lhe granjearam o respeito e a admiração da comunidade jurídica brasileira e fizeram dele uma figura singular, vamos ver como, diante de cada caso a ele entregue, sempre tenta extrair o máximo de conteúdo pedagógico e didático aos quais me refiro para se projetar na sociedade. Isto é, poderíamos dizer que o Ministro, o Juiz e o Jurista Marco Aurélio não se limita a julgar um caso, mas vai além e, nos seus votos, tira tudo que o caso oferece para exercer essa função pedagógica.


DEPOIMENTO: Pessoalmente, ele merece todo o meu respeito e o da nossa instituição, a consideração e apreciação de todos os nossos membros pela valorização que, inclusive, dá à Defensoria Pública da União. Segundo entendo, é uma personalidade de grandeza moral e pessoal, um eminente Jurista. Ele chegou ao cargo supremo do Poder Judiciário do País sem modificar sua forma de ser, seu caráter. As qualidades que o destacam continuamente, a meu ver, são: a independência, a transparência, a preocupação com o social. É uma pessoa inovadora, com muito otimismo e uma urbanidade muito forte. Está procurando mudar a imagem de um Judiciário engessado, como se tinha antigamente e a própria população tem. O Judiciário hoje é para o povo. O espírito do Judiciário, transmitido pelo Ministro Marco Aurélio, como Presidente do Supremo, e por alguns outros Ministros, é exatamente fazer com que o povo sinta essa Corte como a sua casa.


Alberto Dines – Presidente, queria voltar à questão da corrupção/impunidade. Parece-me – isso também tem a ver com a delinqüência e o problema da violência – que alguma coisa não está correndo fluentemente no processo de punição, e, às vezes, há certos atalhos promovidos pela corrupção. Como o Senhor vê isso?


Ainda existe um certo sentimento de impunidade, o qual está sendo passo a passo afastado, no que as coisas afloram e se busca a responsabilidade de quem claudicou. Precisamos mudar aquela cultura passada e estabelecida quase de uma forma linear. Precisamos, no Brasil, nesse campo, não de novas leis, mas de homens que cumpram a legislação existente, homens públicos. Com os acontecimentos dos três ou quatro últimos anos, todos, a meu ver, estão bem mais espertos e manterão freios inibitórios conforme denominei rígidos, deixando, portanto, de sucumbir a uma tentação ou à paixão condenável de, por exemplo, “na lei de Gerson”, levar vantagem em tudo. Creio estarmos num aprimoramento. Referi-me a uma fase de depuração, a qual existe realmente. Por isso volto até para o início: precisamos preservar o valor maior decorrente da Constituição, a liberdade de bem informar o público em geral. A partir daí, as instituições funcionam, as coisas são esclarecidas e se tem o próprio Ministério Público fustigando, entrando com a ação penal, pois é o titular dela.


Presidente, tem um assunto que é mais da esfera forense, do Judiciário, escapa um pouco ao cidadão comum, mas vem sendo mencionado: a questão da cláusula vinculante, a sua não-adoção tem atrapalhado muito, como o Senhor vê essa questão, ou melhor, explique com essa facilidade pedagógica que o Senhor tem, o que é isso e se atrapalha, ou não, a administração da Justiça.


Só acredito no ofício judicante a partir da formação humanística e profissional daquele que o exerça. O juiz não pode se tornar um batedor de carimbo. Mesmo porque a tendência do homem é de adoção da lei do menor esforço. É de generalizar os casos. Indaga-se: eficácia vinculante quanto à atuação do Estado-Juiz que se coaduna com o conceito que temos de julgamento?


Cada processo é um processo, tem muros próprios, elementos probatórios peculiares que levarão ao convencimento sobre a procedência, ou não, do direito articulado. Costumo dizer que os processos repetidos não me dão trabalho, ainda sou um juiz à antiga que pego no pesado, entendo que a atuação é pessoal e, aí, os processos repetidos, evidentemente, dependem de uma simples adaptação do que eu já confeccionei, a assessoria procede a essa adaptação.
Outra coisa, os casos repetidos não correm nos planos econômicos, vivemos, em termos de plano, numa certa instabilidade, já há oito anos. Creio ser preciso, muito mais, dar ênfase à adoção desse efeito vinculante pela Administração Pública, deixando ela de interpor, por exemplo, recursos protelatórios. Agora mesmo, aqui no Supremo Tribunal Federal, a Caixa Econômica deu o exemplo – acompanhada pela Advocacia-Geral da União -, importantíssimo, em termos de advocacia pública. Antes o que havia? Interpunha-se um recurso automaticamente para se evitar maledicência, porque se isso não ocorresse se diria, bem, foi cooptado pela parte contrária.
A Caixa Econômica acabou de desistir de quatorze mil recursos que estavam aguardando autuação e distribuição aos Ministros. Esses processos vão baixar para execução imediata quanto à correção dos saldos do fundo de garantia. Não vejo com bons olhos a dita súmula vinculante, aguardemos um pouco mais, o número de processos tendem a diminuir substancialmente, e, aí, vamos verificar sopesando também o que está em jogo se vale à pena caminhar-se para transformação do juiz em um batedor de carimbo.


O Senhor tocou em outro assunto fascinante, falou na questão da formação humanística, que é um problema….


Presume-se que a jurídica todo juiz tem, não a técnica.


Nos casos dos jornalistas há uma discussão que se trava, o jornalismo é uma técnica ou uma formação humanística com senso de responsabilidade de cidadania maior. Como o Senhor vê a formação dos advogados no Brasil, há uma discussão, muito importante, que termina no próprio Judiciário.


Quando a faculdade é benévola com o aluno, a vida econômica, profissional é impiedosa. Vamos deixar que o mercado proceda a essa seleção, despontam aqueles que realmente tem um valor maior, isso ocorre em todo e qualquer campo.


Seria como nos Estados Unidos, quer dizer Harvard, Yale, tem uma grife de qualidade que vai fazer com que ele…


Sim, hoje, temos o problema dos conceitos dos cursos jurídicos, de medicina e dos demais, é um passo dado; e, evidentemente, a tendência é a de os alunos e as faculdades se esmerarem, a fim de alcançarem um conceito melhor, e terem, a partir deste, um respaldo até para uma vida profissional de sucesso.


Com relação a isso, quase encerrando, o Senhor acha que esse exame de habilitação da OAB é importante?


É importantíssimo, e vem sendo feito com rigor. O aluno sai com um canudo debaixo do braço, e senão tiver sido um bom aluno, porque mais importante do que a própria faculdade é a  compenetração do aluno. Sou professor universitário, e digo que o meu papel é despertar, principalmente, o interesse do aluno pelo estudo, pelo Direito, pelo aperfeiçoamento prestante, pela filosofia do Direito. O exame de ordem e a capacidade e ingressar em juízo, competições que pressupõem a inscrição na Ordem, é importantíssimo, para saber se aquele que se formou conseguiu, portanto, um diploma universitário, está habilitado, ou não, a exercer bem a profissão.


Agora, sem chegar a qualquer indiscrição, como foi a sua experiência como Presidente da República, quer dizer, o Senhor estava no outro lado da Praça, em outro Poder, como olhou o Brasil daquele lado?


Eu tive até uma expressão: disse que é muito mais fácil ser estilingue do que vidraça – não que eu fosse estilingue. Sempre atuei no Supremo, no Tribunal Superior do Trabalho, no Tribunal Regional do Trabalho, no Rio de Janeiro, com absoluta eqüidistância. Digo mesmo, quando tenho que votar em harmonia com certa política governamental, em curso, voto, mas, quando essa política se mostra conflitante com a Constituição, com a Lei Maior do País, voto de forma contrária. O artigo 20, na Lei de Responsabilidade Fiscal, que é a medula, fixa percentuais, alusivos a gastos com pessoais, por Poder, e foi salvo porque reajustei o meu voto. Em um “score” apertadíssimo, de seis votos a cinco, indeferimos a liminar e mantivemos o texto. A experiência do outro lado da Praça dos Três Poderes: muito gratificante. Após sete dias, saí com a minha formação muito enriquecida, por isso, digo que o aperfeiçoamento é constante, é inesgotável, não se chega a uma plenitude.


E o Brasil que o Senhor viu nos dois extremos da Praça, o que passa lá no Planalto e o Brasil que passa aqui, tem esperanças?


Muita, muita esperança! Esperança quanto aos dias melhores, ao bem estar do cidadão. Por isso creio que precisamos voltar os olhos para o social. É tempo de retomarmos, aí, o desenvolvimento, é tempo de fomentarmos um mercado que abrigue essa mão que é projetada nesse mercado anualmente.


Sr. Presidente, muito obrigado e boa noite.


É uma satisfação enorme, Alberto Dines.


 


 

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