Moradores de comunidades relatam rotina de violência em audiência pública

Representantes de coletivos e associações e parentes das vítimas participaram da audiência pública sobre letalidade policial no STF.

16/04/2021 19:24 - Atualizado há 8 meses atrás

A maior parte das exposições do período da tarde do primeiro dia da audiência pública sobre a letalidade policial no Rio de Janeiro coube a entidades que representam moradores de comunidades e parentes de vítimas das ações da polícia. Eles relataram a rotina e os efeitos dessa situação no dia a dia das pessoas e propuseram saídas.

A audiência foi convocada pelo ministro Edson Fachin, relator da Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF 635) em que Partido Socialista Brasileiro (PSB) questiona a política de segurança pública no estado.

Rede Rio Criança
Márcia Gatto, expositora da organização não governamental, afirmou que, no Brasil, mata-se mais do que em países em guerra e, segundo o Mapa da violência, os homicídios representam quase metade das mortes de adolescentes. Como solução, a regulamentação da política de armamento e munições da polícias e do uso de helicópteros nas operações, a redução do uso de armamento mortal nas favelas, a capacitação dos agentes policiais em Direitos Humanos e a priorização das investigações de crimes cometidos contra crianças e adolescentes.

Em relação ao sistema de justiça, Márcia sugeriu a criação de varas especializadas em crimes contra crianças e adolescentes, a priorização da tramitação desses processos e a reparação extrajudicial a familiares das vítimas. Ela citou o caso Henry Borel como exemplo da diferenciação “clara e notória” de tratamento, com base na cor e na classe social das vítimas. “Há agilidade em elucidar os crimes da classe dominante, mas falta vontade política nos crimes contra esses indesejáveis ‘seres matáveis’”, disse.

Rede da Maré
Para Eliana Sousa, expositora da instituição, uma sociedade com isonomia de direitos exige a garantia de um patamar básico de dignidade humana, que contemple todo cidadão e toda cidadã, independentemente de cor, etnia, credo e sexo. Infelizmente, a seu ver, o Brasil está longe de alcançar os dados minimamente aceitáveis em uma sociedade democrática.

Ela defendeu um Ministério Público atuante como forma de inibir ações ilegais das forças policiais, com um promotor plantonista, o acompanhamento sistemático das vítimas e das famílias e a realização de perícias independentes em investigação de crimes praticados por policias. Ao Poder Judiciário, a seu ver, cabe garantir que moradores das periferias possam confiar plenamente na força do Estado para protege-los. “Apenas assim teremos, de fato, um país que afirma a sua democracia”, concluiu.

Grupo Mães da Maré Vítimas da Violência do Estado
Integrantes do grupo relataram os casos de seus filhos, mortos ou feridos em ações policiais. Elas reivindicam, entre outros pontos, a presença de ambulâncias nas operações e câmeras nas viaturas e uniformes dos agentes de segurança e a não realização de operações noturnas, quando os moradores estão chegando do trabalho ou, alguns, estão saindo para trabalhar, e também em horários escolares.

Elas frisaram que são a favor das operações, desde que o Estado, na repressão ao crime, proteja a vida de inocentes. “Nossas crianças e adolescentes, quando não são mortos, têm o seu direito de ir e vir tirado”, disse Bruna Silva.

Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense
Isilmar de Jesus, representante da rede, destacou que os números de letalidade policial no país mostram a necessidade da ADPF, mesmo fora do contexto da pandemia, e frisou a urgência de fiscalização, em razão do descumprimento reiterado da liminar pela polícia.

“A ADPF salva vidas”, disse Elisabeth Santos. Para ela, é imperioso o cumprimento da Constituição Federal, “com o Ministério Público fazendo seu trabalho, que é o controle externo das polícias”.

Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
Dalva Correa, Luciano Norberto dos Santos e Patrícia Oliveira contribuíram com seus relatos pessoais na condição de familiares de vítimas da violência policial. Eles expuseram que, além da dor de perder um ente querido, os parentes ainda sofrem com transtornos traumáticos que, muitas vezes, levam ao desemprego e a doenças, mentais e até físicas.

Para a mãe de Tiago Correa, morto aos 19 anos em uma operação policial, a dor é rotineira. Dalva lembrou que abraçou seu filho no nascimento coberto de sangue e, da mesma forma, se despediu dele em 16 de abril de 2003, quando foi vítima do caso que ficou conhecido como Chacina do Borel.

Luciano Noberto teve seu irmão morto quando saia do trabalho. Além de lamentar as vítimas da letalidade policial, ele se solidarizou com os milhares de familiares dos mortos pela Covid-19, “que também são vítimas da negligência do Estado”.

Por sua vez, o irmão de Patrícia sobreviveu à Chacina da Candelária, e seu caso levou à criação do Programa de Proteção à Testemunha. Durante a audiência pública, ela disse que recebeu relatos de operações em comunidades da capital fluminense e revelou que muitas pessoas se recusaram a participar do debate por medo de represálias. “É necessário um controle externo da atividade policial”, ponderou, ao alertar que a Assembleia Legislativa do estado vota projeto de lei para a reintegração de policiais militares expulsos da corporação.

Movimento Parem de Nos Matar
Para Paulo Henrique de Oliveira, representante do coletivo, a iniciativa de realizar a audiência pública é um momento histórico. “A comunidade está falando com a mais alta Corte do país, e favelados têm a sua voz ouvida por milhares de pessoas que acompanham a audiência virtualmente”, disse.

Paulo assinalou que a violência é uma constante na história dos moradores das favelas e leva mães a um eterno luto por terem seus filhos assassinados. A seu ver, é urgente a adoção de medidas pelo poder público para acabar com as dores dessas mães, não somente durante a pandemia. Ele defendeu a adoção de protocolos das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário, que traria mais transparência à investigação de mortes por policiais militares e à luta contra a letalidade policial.

Coletivo Papo Reto
Renata Trajano, moradora do Complexo do Alemão, contou que os próprios moradores formaram um gabinete de crise durante a pandemia para enfrentar não só as questões de violência, mas também a fome que assola a comunidade. Segundo ela, a liminar concedida pelo ministro Fachin proibindo incursões policiais nas favelas durante a pandemia foi descumprida, e a polícia chegou a confundir o caminhão carregado com cestas básicas e produtos de higiene com um caminhão roubado.

“A gente morre várias vezes porque, depois que temos nossos filhos mortos, precisamos provar que eles não são bandidos. Nós sobrevivemos porque nascemos para ser resistência”, ressaltou, ao criticar a violência policial.

SP, GT, CM//CF

 

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