Ministro Marco Aurélio concede alvará de soltura a envolvidos no caso do propinoduto
O ministro Marco Aurélio, do STF, estendeu a liminar concedida em Habeas Corpus (HC 84038) de Sérgio Jacome de Lucena, envolvido no “escândalo do propinoduto”, aos demais co-réus presos preventivamente. O ministro fundamentou-se no artigo 580 do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe que “a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundamentado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros”.
No dia 15 de junho, Marco Aurélio deferiu liminar em Habeas Corpus para determinar a expedição de alvará de soltura em favor de Sérgio Jacome de Lucena. Ele e outros fiscais da Secretaria de Fazenda do Rio de Janeiro e da Receita Federal no Estado foram acusados de envio ilegal de dinheiro para a Suíça. Com a extensão da liminar, concedida pelo ministro ontem (21/6), os demais co-réus sob a custódia do Estado também serão soltos.
No despacho, Marco Aurélio relata que, no dia 18 de junho, chegaram ao STF petições visando à extensão da liminar aos co-réus Axel Ripoll Hamer, Amauri Franklin Nogueira Filho e Carlos Eduardo Pereira Ramos. Ao analisar os pedidos, ele aplicou o artigo 580 do CPP e remeteu-se ao julgamento de outro HC, em que a Primeira Turma do STF decidiu que “o Estado há de se aparelhar, objetivando o desfecho do processo criminal em tempo hábil. Uma vez configurado o excesso de prazo da preventiva, cabe afastá-la, evitando-se com isso verdadeira transformação em cumprimento precoce de pena”.
Marco Aurélio também se referiu ao artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (inciso LIV); “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” (inciso LXVI); “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória” (inciso LVII). Para o ministro, esses princípios constitucionais não foram atendidos.
O ministro lembrou que, na formalização da prisão preventiva, registrou-se que os acusados são réus primários, com profissão certa e endereço conhecido, mas partiu-se da premissa de que, em liberdade, poderiam deixar o país. Mais uma vez, Marco Aurélio invocou a jurisprudência do STF, que julgou caso de decreto de prisão preventiva fundamentada, principalmente, no temor de evasão do acusado. “A custódia cautelar não pode se basear em conjecturas, mas na real necessidade de constrição que justifique a excepcionalidade da medida”, diz a ementa da Segunda Turma, que decidiu sobre essa matéria (RHC 67069).
SI/RR
Ministro-relator Marco Aurélio (cópia em alta resolução)
Leia, a seguir, a íntegra do despacho do ministro Marco Aurélio:
EXTENSÃO NA MEDIDA CAUTELAR NO HABEAS CORPUS 84.038-8 RIO DE JANEIRO
DECISÃO
HABEAS CORPUS – LIMINAR – EXTENSÃO – PRISÃO PREVENTIVA – FUNDAMENTOS – DECRETO CONDENATÓRIO – RECURSO EM LIBERDADE.
1. Em decisão de 15 de junho último, assim retratei o quadro configurado no processo:
A inicial de folha 2 a 19 revela inconformismo com decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de habeas corpus. Eis os fatos narrados na inicial:
a) em 10 de abril de 2003, o Ministério Público Federal ajuizou ação cautelar de produção antecipada de provas, vindo a ser ouvida Valéria Gonçalves dos Santos, ex-companheira de Carlos Eduardo Pereira Ramos, um dos investigados;
b) após a audição, o Ministério Público requereu a prisão preventiva dos então investigados;
c) procedeu-se à custódia, deferida à luz da necessidade de garantir-se a ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a manutenção de campo próprio à aplicação da lei;
d) o Ministério Público ofereceu denúncia contra o paciente, alegando a infringência aos artigos 288, 299, 316 do Código Penal; 22, parágrafo único, última parte, da Lei nº 7.492/86; 1º, incisos I e III, da Lei nº 8.137/90 e 1º, incisos V, VI e VII, da Lei nº 9.613/98;
e) não havendo prosperado habeas corpus ajuizado no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, impetrou-se substitutivamente recurso ordinário, indeferindo o Superior Tribunal de Justiça a ordem;
f) o paciente foi condenado pelos crimes dos artigos 299 e 316 do Código Penal; 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86; 1º, incisos I e III, da Lei nº 8.137/90 e 1º, inciso IV, da Lei nº 9.613/98, não tendo sido apenado considerada a imputação de integrar quadrilha – artigo 288 do Código Penal;
g) consignou-se a impossibilidade de o paciente recorrer em liberdade;
h) o habeas anteriormente interposto foi conhecido, ante circunstância alheia à vontade do beneficiário da impetração.
Argúi-se a ofensa ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, diante da ausência, na sentença proferida, dos motivos da condição imposta para a recorribilidade – a submissão à custódia do Estado. Assevera-se ser o paciente primário e portador de bons antecedentes, possuindo família estruturada. A imposição da custódia, para se ter como admissível o recurso, estaria a contrariar o princípio da não-culpabilidade, discrepando dos ares democráticos ora vividos e relembrando a época de exceção. Refuta-se a óptica de ser a prisão efeito automático da sentença condenatória, afirmando-se que, quando da preventiva, partiu-se de suposições, no tocante à garantia da ordem pública, à conveniência da instrução criminal, ou à preservação de campo propício à aplicação da lei penal. Aponta-se que o paciente espontaneamente entregou o passaporte, havendo atendido à intimação da autoridade policial e acorrido à audiência de produção antecipada de provas. Requerera que a importância mantida no exterior fosse recambiada ao Brasil e recolhida aos cofres públicos, dando, assim, prova inequívoca de não pretender ficar com os valores. Também se diz da improcedência de presumir-se que, solto, viesse o paciente a dar continuação à prática delituosa, isso em face de se haver decretado a perda do cargo público. No fecho da inicial, foi pleiteada a solicitação de informações ao Superior Tribunal de Justiça, com encaminhamento do acórdão prolatado, para, então, examinar-se o pedido de concessão da medida acauteladora, confirmando-se o direito à liberdade, já prejudicada nos últimos dez meses. Juntaram-se os documentos de folha 21 a 280. À folha 284, despachei:
Na forma requerida – folha 17 -, solicitem-se informações ao STJ, devendo vir cópia do acórdão proferido e, caso ainda não confeccionado, do voto condutor do julgamento, e dos demais votos, consideradas notas taquigráficas. Segue em fita magnética relatório parcial.
Brasília, 03.03.04.
Aos autos anexou-se o ofício de folha 495, do Superior Tribunal de Justiça, com os votos proferidos no julgamento do Habeas Corpus nº 29.684/RJ, contando as peças relativas ao acórdão com o carimbo de “sem revisão”. O processo veio-me para apreciação em 14 de junho de 2004, às 18:03h.
Então, concedi a medida acauteladora para determinar, relativamente ao paciente, Sérgio Jacome de Lucena, a expedição de alvará de soltura a ser cumprido com as cautelas legais, ou seja, caso não se encontrasse sob a custódia do Estado por motivo diverso do que embasava a prisão preventiva formalizada no Processo nº 2003.5101505176.5, da Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro, ou a sentença, ainda não coberta pela cláusula da irrecorribilidade, prolatada pela 3ª Vara Federal (folha 526 a 532).
Em 18 imediato, deram entrada no protocolo desta Corte petições visando à extensão da medida acauteladora aos co-réus Axel Ripoll Hamer, Amauri Franklin Nogueira Filho e Carlos Eduardo Pereira Ramos, sendo que as duas primeiras chegaram via fac-símile. No tocante a Axel, ressalta-se a identidade de situação, quer ante o pronunciamento que resultou na preventiva, quer os parâmetros da sentença proferida. Assevera-se, mais, que o custodiado, preso desde 15 de abril de 2003, sofreu enfarto agudo do miocárdio, precisando de acompanhamento médico inviável nas dependências às quais recolhido – Custódia de Benfica. Quanto a Amauri Franklin Nogueira Filho, articula-se com as mesmas premissas já glosadas no habeas impetrado em benefício de Sérgio Jacome de Lucena, afirmando-se que, após haver sido admitida a primariedade, o Juízo aludira a maus antecedentes, reportando-se, para chegar à incidência do artigo 594 do Código de Processo Penal, a ação instaurada há mais de vinte anos, cujo resultado se desconhece. Alega-se ainda que o citado co-réu, preso há mais de 14 meses, entregara o passaporte às autoridades competentes. Por último – a petição apresentada pela advogada Cecy Santoro é concisa -, diz-se que na mesma hipótese enquadra-se Carlos Eduardo Pereira Ramos.
2. Em primeiro lugar, consigno que a busca da preservação da liberdade de ir e vir não se faz submetida à forma. Por isso mesmo, qualquer do povo pode dar notícia do constrangimento e procurar, na última trincheira do cidadão, que é o Judiciário, a proteção cabível, fazendo-o sem a exigência de peça datilografada, redigida sob o ângulo técnico-jurídico e em original. Daí não se poder potencializar a disciplina dessa via moderna de transmissão de dados que é o fac-símile. De toda maneira, há de se levar em conta a viabilidade de atuação de órgão judicante até mesmo de ofício.
Segundo o disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal – e reconhecem-se neste diploma textos afinados com o Estado Democrático de Direito, com as peculiaridades que se notam em uma república -, que, “no caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25)” – numeração vigente à época -, “a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros”. A interpretação literal cede a métodos mais eficazes, como são o sistemático e, acima de tudo, o teleológico, de modo a se alcançar o objetivo da própria norma. É possível a aplicação do artigo 580 em análise ainda que não se cuide de decisão formalizada em sede recursal, abrangendo a regra todo e qualquer pronunciamento que beneficie co-réu, desde que as circunstâncias sejam comuns. Tratando-se de habeas corpus, o caso se mostra até mais favorável, em vista de ato conflitante com a ordem jurídica em vigor. No que tange à incidência do preceito, observe-se a ausência de previsão de provocação do interessado. Aquele que age na qualidade de Estado-juiz há de sopesar a situação concreta e, constatada a pertinência no figurino legal, implementar a providência. O texto do artigo 580 do Código de Processo Penal pode e deve ser conjugado com a regra do § 2º do artigo 654 do mesmo diploma, sobre a competência dos juízes e tribunais para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Atente-se para o fato de a atividade acauteladora ser ínsita à jurisdição, presente a garantia constitucional do inciso XXXV do artigo 5º da Carta de 1988, reveladora do livre acesso ao Judiciário para reparar lesão ou afastar ameaça de lesão a direito.
A rigor, cumpre reconhecer que, na formalização da liminar de folha 526 a 532, já deveria ter ocorrido a extensão ora almejada por três dos co-réus. Assim procedi quando enfrentei pedido de concessão de liminar no Habeas Corpus nº 84.181-3, havendo a Turma, no julgamento final, placitado tal óptica. Eis como confeccionei a ementa que veio a sintetizar o acórdão prolatado pelo Colegiado:
LIMINAR – ALCANCE – CO-RÉUS – ARTIGO 580 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. A interpretação teleológica do artigo 580 do Código de Processo Penal é conducente à aplicação de benefício outorgado a co-réu no bojo do habeas corpus, inclusive no campo da liminar.
PRISÃO – EXCESSO DE PRAZO. O Estado há de se aparelhar, objetivando o desfecho do processo criminal em tempo hábil. Uma vez configurado o excesso de prazo da preventiva, cabe afastá-la, evitando-se com isso verdadeira transformação em cumprimento precoce de pena.
Realmente, os parâmetros da decisão sinalizam, a mais não poder, a identidade de situações dos réus a quem se impôs a condenação, determinando-se o imediato início do cumprimento da pena, no que negado o direito de recorrerem em liberdade. Noto que existe campo propício à extensão pretendida e que, em face dos artigos do Código de Processo Penal referidos, deve alcançar os demais réus, com exceção de Marlene Rozen, Reinaldo de Menezes da Rocha Pitta, Alexandre da Silva Martins, Romeu Michel Sufan e Paulo Henrique Borges Sekiguchi, que foram beneficiados, de início, com o regime aberto e, a seguir, com a substituição da pena restritiva de liberdade pela restritiva de direitos. Reitero as premissas da decisão ora estendida:
O julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça ficou assim sintetizado, conforme peças enviadas a esta Corte, muito embora com a tarja de “sem revisão”:
HABEAS CORPUS. LAVAGEM DE DINHEIRO, EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL, CORRUPÇÃO PASSIVA E FALSIDADE IDEOLÓGICA. PRISÃO PREVENTIVA. ADVENTO DE SENTENÇA CONDENANDO O PACIENTE A 16 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO COMO INCURSO NOS ARTIGOS 1º, INCISO V, DA LEI Nº 9.613/98, 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 7.492/86, 1º, INCISO I, E 3º, INCISO II, AMBOS DA LEI Nº 8.137/90, E 299 DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL E TAMBÉM COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRETENSÃO DE APELAR EM LIBERDADE. ORDEM DENEGADA.
1 – Não se mostra possível conferir o direito de apelar em liberdade a acusado que permaneceu preso durante o processo em virtude de provimento devidamente fundamentado, notadamente se agora se encontra condenado a 16 anos e 6 meses de reclusão, pela prática dos delitos descritos nos artigos 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/98, 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, 1º, inciso I, e 3º, inciso II, ambos da Lei nº 8.137/90, e 299 do Código Penal, reconhecidas as necessidades da custódia para assegurar a aplicação da lei penal e como garantia da ordem pública.
2 – Habeas corpus denegado (folha 498).
No voto condutor do julgamento, assentou-se (folha 521):
Como visto, a sentença negou ao paciente o direito de apelar em liberdade, recomendando-o na prisão em que se encontra.
Evidente, assim, que modificou-se (sic) o título da custódia, agora decorrente de sentença condenatória.
No entanto, diante desse quadro, está claro que o magistrado, muito embora sem o dizer expressamente, manteve a prisão em face da anterior decretação da preventiva.
Não vejo, portanto, óbice a que se conheça do pedido.
Como bem posto na impetração, na verdade o habeas corpus está a desafiar o decreto de prisão cautelar do paciente, mantido no acórdão do Tribunal Federal da Segunda Região.
Compreenda-se o envolvimento, na espécie, quer da preventiva, quer do verdadeiro início de cumprimento da pena, no que houve a recomendação à prisão na sentença condenatória.
Ante qualquer controvérsia sobre o direito de ir e vir, há de abrir-se a Constituição Federal, observando-se normas que surgem como garantias maiores do cidadão. Extrai-se do artigo 5º nela contido:
a) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal – inciso LIV;
b) ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança – inciso LXVI;
c) ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória – inciso LVII.
Neste exame preliminar, conclui-se pelo desatendimento a esses ditames constitucionais. A preventiva foi decretada consoante peça que se encontra às folhas 39 e 40. Aludiu-se à ordem pública e, aí, apontou-se a necessidade de prevenir a repetição de fatos criminosos. Mais do que isso, fez-se referência ao acautelamento do meio social e à credibilidade da Justiça, consignando-se a gravidade do crime e a repercussão. Pois bem, têm-se parâmetros reveladores, a princípio, de agentes episódicos – servidores públicos que teriam claudicado na arte de proceder, incidindo em práticas criminosas. Supor-se a continuidade dos delitos é passo demasiadamente largo, contrariando a ordem natural das coisas, o afastamento da atividade desenvolvida na Administração Pública, na fiscalização própria às relações jurídicas concernentes aos tributos. O objetivo de acautelar o meio social surge com dose maior de subjetivismo, servindo, na forma em que vazado, à prisão de todo aquele que seja acusado, simplesmente acusado, de um ato delituoso, invertendo-se, com isso, valores, presumindo-se não o que normalmente ocorre, mas o extravagante, o excepcional, a postura à margem do que se espera do homem médio. Sob o ângulo da credibilidade da Justiça, o que asseverado condiz com a punição, então, a ferro e fogo, tornando-a meio de justiçamento e não órgão que implique a eqüidistância desejada na atuação do próprio Estado. Pouco importa a gravidade do crime e a impressão no meio social. Quanto mais grave o crime e maior a reverberação, tem-se a conveniência de resguardar-se as prerrogativas do acusado, as franquias, a intangibilidade da ordem jurídica constitucional. Com esses enfoques é que a Justiça se impõe e se torna acreditada perante os concidadãos.
Relativamente à instrução penal, não fosse a particularidade de já achar-se encerrada com decreto condenatório devidamente formalizado, constata-se, no pronunciamento judicial atinente à preventiva, haver sido acionada capacidade intuitiva. Simplesmente supôs-se que o paciente em liberdade viria a “inutilizar, modificar, alterar ou mesmo impedir a obtenção de provas de seus crimes”. Em suma, o raciocínio desenvolvido convém para justificar a prisão em qualquer caso, mormente quando se trate de pessoa que, em passado recente, haja atuado no âmbito da Administração Pública. A problemática da instrução penal, sob o prisma da preventiva, deve ser inserida num contexto jurídico a partir de dados concretos, dados já existentes, imaginando-se, aí sim, a continuidade de procedimento visando a frustrar a apuração dos fatos. É certo que se remeteu à notícia, simples notícia, de que se procurara obstaculizar o cumprimento de carta rogatória. Todavia não se conta com uma linha sobre a imputação de ato dos acusados, muito menos do paciente. A inserção do trecho fez-se com generalidade imprópria, razão pela qual não se mostra idônea a alicerçar a prisão. Indispensável seria a menção de fato concreto e não de notícia, talvez mesmo por ouvir dizer.
Por último, na preventiva, cogitou-se da possibilidade de fuga. Ora, esta é sempre factível, consubstanciando até mesmo um direito natural do homem, no que se sinta injustiçado por certa determinação. Lançou-se, no procedimento mediante o qual foi formalizada a preventiva, serem os acusados primários, com profissão certa e endereço conhecido, mas se potencializou a posse de recursos e, então, partiu-se para a premissa de que, em liberdade, poderiam deixar o País. Vale registrar o que já decidido pela Corte sobre a fuga e a ausência de base para, via suposição, chegar-se à custódia.
HABEAS CORPUS – CUSTÓDIA PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO INCONVINCENTE.
Decreto de prisão preventiva fundamentado principalmente no temor da evasão do paciente. A custódia cautelar não pode se basear em conjecturas, mas na real necessidade de constrição que justifique a excepcionalidade da medida. Precedentes do STF.
Recurso provido (Recurso em Habeas Corpus nº 67.069-5, Segunda Turma, relator ministro Francisco Rezek, Diário da Justiça de 31.03.1989)
Vê-se que a preventiva, decretada em abril de 2003, o foi à margem do arcabouço normativo de regência.
Diante de novo título a respaldar a custódia, ao contrário da óptica externada no julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça, impossível é ter-se como implicitamente adotados os fundamentos do ato pretérito, da prisão no início do processo. Em jogo a liberdade de ir e vir, a formalização do pronunciamento, a clareza da deliberação é exigível, descabendo presumir-se, ou seja, conceber decisão implícita. Na longa e substanciosa sentença proferida, quanto à dosimetria da pena (folha 223 a 260), proclamou-se:
Nego aos réus o direito de apelar em liberdade, exceto com relação aqueles que tiveram sua pena privativa de liberdade substituída. Recomendem-se os réus na prisão em que se encontram e expeçam-se os mandados de prisão para os réus em liberdade, por força agora de sentença condenatória (folha 259).
O que consignado não se coaduna com os novos ares constitucionais. É próprio à quadra de exceção, como aquela vivenciada quando veio à balha, em penada única, via decreto-lei do então Presidente da República, o Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Neste, em textos não recepcionados pela Carta de 1988, encontra-se base para a negativa de viabilização do apelo em liberdade. O teor da sentença se coaduna com o artigo 393 do Código de Processo Penal:
Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:
I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;
II – ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.
O teor da sentença é harmônico com o artigo 585 do Código de Processo Penal:
Art. 585. O réu não poderá recorrer da pronúncia senão depois de preso, salvo se prestar fiança, nos casos em que a lei a admitir.
O teor da sentença está condizente com o extravagante pressuposto de recorribilidade versado no artigo 594 do Código de Processo Penal:
Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.
O teor da sentença está afinado com o preceito do artigo 595, também do Código de Processo Penal:
Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.
O teor da sentença também não discrepa da previsão óbvia do artigo 596 do Código de Processo Penal:
Art. 596. A apelação da sentença absolutória não impedirá que o réu seja posto imediatamente em liberdade.
Por último, o teor da sentença conforma-se com o artigo 669:
Art. 669. Só depois de passar em julgado, será exeqüível a sentença, salvo:
I – quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança;
II – quando absolutória, para o fim de imediata soltura do réu, desde que não proferida em processo por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a 8 (oito) anos.
A Carta da República, entretanto, está no ápice da pirâmide das normas jurídicas. Dotada de rigidez, a todos impõe-se e os dispositivos do Código de Processo Penal, pedagogicamente transcritos nesta decisão, não guardam harmonia com as garantias acima referidas. É hora de dar-se concretude aos ditames constitucionais, pagando-se, assim, o preço por viver-se em um Estado Democrático de Direito. Jamais é demasia frisar-se que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele. A prisão, tal como formalizada, surge temporã.
Estendo a liminar não só aos três requerentes – Axel Ripoll Hamer, Amauri Franklin Nogueira Filho e Carlos Eduardo Pereira Ramos, como também, a partir do disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal, aos demais co-réus que estejam sob a custódia do Estado. Observe-se o fecho da decisão, no que implicou a expedição de alvará de soltura com as cautelas legais. A extensão se faz nos moldes estabelecidos quanto ao paciente Sérgio Jacome de Lucena, ou seja, caso os beneficiários não se encontrem presos por motivo diverso do retratado na prisão preventiva formalizada no Processo nº 2003.5101505176.5 da Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro ou na sentença ainda não coberta pela cláusula da irrecorribilidade proferida, nesse processo, pela 3ª Vara Federal da citada Seção.
3. Publique-se.
Brasília, 20 de junho de 2004.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator
DECISÃO
HABEAS CORPUS – LIMINAR – EXTENSÃO – PRISÃO PREVENTIVA – FUNDAMENTOS – DECRETO CONDENATÓRIO – RECURSO EM LIBERDADE.
1. Em decisão de 15 de junho último, assim retratei o quadro configurado no processo:
A inicial de folha 2 a 19 revela inconformismo com decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de habeas corpus. Eis os fatos narrados na inicial:
a) em 10 de abril de 2003, o Ministério Público Federal ajuizou ação cautelar de produção antecipada de provas, vindo a ser ouvida Valéria Gonçalves dos Santos, ex-companheira de Carlos Eduardo Pereira Ramos, um dos investigados;
b) após a audição, o Ministério Público requereu a prisão preventiva dos então investigados;
c) procedeu-se à custódia, deferida à luz da necessidade de garantir-se a ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a manutenção de campo próprio à aplicação da lei;
d) o Ministério Público ofereceu denúncia contra o paciente, alegando a infringência aos artigos 288, 299, 316 do Código Penal; 22, parágrafo único, última parte, da Lei nº 7.492/86; 1º, incisos I e III, da Lei nº 8.137/90 e 1º, incisos V, VI e VII, da Lei nº 9.613/98;
e) não havendo prosperado habeas corpus ajuizado no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, impetrou-se substitutivamente recurso ordinário, indeferindo o Superior Tribunal de Justiça a ordem;
f) o paciente foi condenado pelos crimes dos artigos 299 e 316 do Código Penal; 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86; 1º, incisos I e III, da Lei nº 8.137/90 e 1º, inciso IV, da Lei nº 9.613/98, não tendo sido apenado considerada a imputação de integrar quadrilha – artigo 288 do Código Penal;
g) consignou-se a impossibilidade de o paciente recorrer em liberdade;
h) o habeas anteriormente interposto foi conhecido, ante circunstância alheia à vontade do beneficiário da impetração.
Argúi-se a ofensa ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, diante da ausência, na sentença proferida, dos motivos da condição imposta para a recorribilidade – a submissão à custódia do Estado. Assevera-se ser o paciente primário e portador de bons antecedentes, possuindo família estruturada. A imposição da custódia, para se ter como admissível o recurso, estaria a contrariar o princípio da não-culpabilidade, discrepando dos ares democráticos ora vividos e relembrando a época de exceção. Refuta-se a óptica de ser a prisão efeito automático da sentença condenatória, afirmando-se que, quando da preventiva, partiu-se de suposições, no tocante à garantia da ordem pública, à conveniência da instrução criminal, ou à preservação de campo propício à aplicação da lei penal. Aponta-se que o paciente espontaneamente entregou o passaporte, havendo atendido à intimação da autoridade policial e acorrido à audiência de produção antecipada de provas. Requerera que a importância mantida no exterior fosse recambiada ao Brasil e recolhida aos cofres públicos, dando, assim, prova inequívoca de não pretender ficar com os valores. Também se diz da improcedência de presumir-se que, solto, viesse o paciente a dar continuação à prática delituosa, isso em face de se haver decretado a perda do cargo público. No fecho da inicial, foi pleiteada a solicitação de informações ao Superior Tribunal de Justiça, com encaminhamento do acórdão prolatado, para, então, examinar-se o pedido de concessão da medida acauteladora, confirmando-se o direito à liberdade, já prejudicada nos últimos dez meses. Juntaram-se os documentos de folha 21 a 280. À folha 284, despachei:
Na forma requerida – folha 17 -, solicitem-se informações ao STJ, devendo vir cópia do acórdão proferido e, caso ainda não confeccionado, do voto condutor do julgamento, e dos demais votos, consideradas notas taquigráficas. Segue em fita magnética relatório parcial.
Brasília, 03.03.04.
Aos autos anexou-se o ofício de folha 495, do Superior Tribunal de Justiça, com os votos proferidos no julgamento do Habeas Corpus nº 29.684/RJ, contando as peças relativas ao acórdão com o carimbo de “sem revisão”. O processo veio-me para apreciação em 14 de junho de 2004, às 18:03h.
Então, concedi a medida acauteladora para determinar, relativamente ao paciente, Sérgio Jacome de Lucena, a expedição de alvará de soltura a ser cumprido com as cautelas legais, ou seja, caso não se encontrasse sob a custódia do Estado por motivo diverso do que embasava a prisão preventiva formalizada no Processo nº 2003.5101505176.5, da Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro, ou a sentença, ainda não coberta pela cláusula da irrecorribilidade, prolatada pela 3ª Vara Federal (folha 526 a 532).
Em 18 imediato, deram entrada no protocolo desta Corte petições visando à extensão da medida acauteladora aos co-réus Axel Ripoll Hamer, Amauri Franklin Nogueira Filho e Carlos Eduardo Pereira Ramos, sendo que as duas primeiras chegaram via fac-símile. No tocante a Axel, ressalta-se a identidade de situação, quer ante o pronunciamento que resultou na preventiva, quer os parâmetros da sentença proferida. Assevera-se, mais, que o custodiado, preso desde 15 de abril de 2003, sofreu enfarto agudo do miocárdio, precisando de acompanhamento médico inviável nas dependências às quais recolhido – Custódia de Benfica. Quanto a Amauri Franklin Nogueira Filho, articula-se com as mesmas premissas já glosadas no habeas impetrado em benefício de Sérgio Jacome de Lucena, afirmando-se que, após haver sido admitida a primariedade, o Juízo aludira a maus antecedentes, reportando-se, para chegar à incidência do artigo 594 do Código de Processo Penal, a ação instaurada há mais de vinte anos, cujo resultado se desconhece. Alega-se ainda que o citado co-réu, preso há mais de 14 meses, entregara o passaporte às autoridades competentes. Por último – a petição apresentada pela advogada Cecy Santoro é concisa -, diz-se que na mesma hipótese enquadra-se Carlos Eduardo Pereira Ramos.
2. Em primeiro lugar, consigno que a busca da preservação da liberdade de ir e vir não se faz submetida à forma. Por isso mesmo, qualquer do povo pode dar notícia do constrangimento e procurar, na última trincheira do cidadão, que é o Judiciário, a proteção cabível, fazendo-o sem a exigência de peça datilografada, redigida sob o ângulo técnico-jurídico e em original. Daí não se poder potencializar a disciplina dessa via moderna de transmissão de dados que é o fac-símile. De toda maneira, há de se levar em conta a viabilidade de atuação de órgão judicante até mesmo de ofício.
Segundo o disposto no artigo 580 do Código de Processo Civil – e reconhecem-se neste diploma textos afinados com o Estado Democrático de Direito, com as peculiaridades que se notam em uma república -, que, “no caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25)” – numeração vigente à época -, “a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros”. A interpretação literal cede a métodos mais eficazes, como são o sistemático e, acima de tudo, o teleológico, de modo a se alcançar o objetivo da própria norma. É possível a aplicação do artigo 580 em análise ainda que não se cuide de decisão formalizada em sede recursal, abrangendo a regra todo e qualquer pronunciamento que beneficie co-réu, desde que as circunstâncias sejam comuns. Tratando-se de habeas corpus, o caso se mostra até mais favorável, em vista de ato conflitante com a ordem jurídica em vigor. No que tange à incidência do preceito, observe-se a ausência de previsão de provocação do interessado. Aquele que age na qualidade de Estado-juiz há de sopesar a situação concreta e, constatada a pertinência no figurino legal, implementar a providência. O texto do artigo 580 do Código de Processo Penal pode e deve ser conjugado com a regra do § 2º do artigo 654 do mesmo diploma, sobre a competência dos juízes e tribunais para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Atente-se para o fato de a atividade acauteladora ser ínsita à jurisdição, presente a garantia constitucional do inciso XXXV do artigo 5º da Carta de 1988, reveladora do livre acesso ao Judiciário para reparar lesão ou afastar ameaça de lesão a direito.
A rigor, cumpre reconhecer que, na formalização da liminar de folha 526 a 532, já deveria ter ocorrido a extensão ora almejada por três dos co-réus. Assim procedi quando enfrentei pedido de concessão de liminar no Habeas Corpus nº 84.181-3, havendo a Turma, no julgamento final, placitado tal óptica. Eis como confeccionei a ementa que veio a sintetizar o acórdão prolatado pelo Colegiado:
LIMINAR – ALCANCE – CO-RÉUS – ARTIGO 580 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. A interpretação teleológica do artigo 580 do Código de Processo Penal é conducente à aplicação de benefício outorgado a co-réu no bojo do habeas corpus, inclusive no campo da liminar.
PRISÃO – EXCESSO DE PRAZO. O Estado há de se aparelhar, objetivando o desfecho do processo criminal em tempo hábil. Uma vez configurado o excesso de prazo da preventiva, cabe afastá-la, evitando-se com isso verdadeira transformação em cumprimento precoce de pena.
Realmente, os parâmetros da decisão sinalizam, a mais não poder, a identidade de situações dos réus a quem se impôs a condenação, determinando-se o imediato início do cumprimento da pena, no que negado o direito de recorrerem em liberdade. Noto que existe campo propício à extensão pretendida e que, em face dos artigos do Código de Processo Penal referidos, deve alcançar os demais réus, com exceção de Marlene Rozen, Reinaldo de Menezes da Rocha Pitta, Alexandre da Silva Martins, Romeu Michel Sufan e Paulo Henrique Borges Sekiguchi, que foram beneficiados, de início, com o regime aberto e, a seguir, com a substituição da pena restritiva de liberdade pela restritiva de direitos. Reitero as premissas da decisão ora estendida:
O julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça ficou assim sintetizado, conforme peças enviadas a esta Corte, muito embora com a tarja de “sem revisão”:
HABEAS CORPUS. LAVAGEM DE DINHEIRO, EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL, CORRUPÇÃO PASSIVA E FALSIDADE IDEOLÓGICA. PRISÃO PREVENTIVA. ADVENTO DE SENTENÇA CONDENANDO O PACIENTE A 16 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO COMO INCURSO NOS ARTIGOS 1º, INCISO V, DA LEI Nº 9.613/98, 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 7.492/86, 1º, INCISO I, E 3º, INCISO II, AMBOS DA LEI Nº 8.137/90, E 299 DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL E TAMBÉM COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRETENSÃO DE APELAR EM LIBERDADE. ORDEM DENEGADA.
1 – Não se mostra possível conferir o direito de apelar em liberdade a acusado que permaneceu preso durante o processo em virtude de provimento devidamente fundamentado, notadamente se agora se encontra condenado a 16 anos e 6 meses de reclusão, pela prática dos delitos descritos nos artigos 1º, inciso V, da Lei nº 9.613/98, 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, 1º, inciso I, e 3º, inciso II, ambos da Lei nº 8.137/90, e 299 do Código Penal, reconhecidas as necessidades da custódia para assegurar a aplicação da lei penal e como garantia da ordem pública.
2 – Habeas corpus denegado (folha 498).
No voto condutor do julgamento, assentou-se (folha 521):
Como visto, a sentença negou ao paciente o direito de apelar em liberdade, recomendando-o na prisão em que se encontra.
Evidente, assim, que modificou-se (sic) o título da custódia, agora decorrente de sentença condenatória.
No entanto, diante desse quadro, está claro que o magistrado, muito embora sem o dizer expressamente, manteve a prisão em face da anterior decretação da preventiva.
Não vejo, portanto, óbice a que se conheça do pedido.
Como bem posto na impetração, na verdade o habeas corpus está a desafiar o decreto de prisão cautelar do paciente, mantido no acórdão do Tribunal Federal da Segunda Região.
Compreenda-se o envolvimento, na espécie, quer da preventiva, quer do verdadeiro início de cumprimento da pena, no que houve a recomendação à prisão na sentença condenatória.
Ante qualquer controvérsia sobre o direito de ir e vir, há de abrir-se a Constituição Federal, observando-se normas que surgem como garantias maiores do cidadão. Extrai-se do artigo 5º nela contido:
a) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal – inciso LIV;
b) ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança – inciso LXVI;
c) ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória – inciso LVII.
Neste exame preliminar, conclui-se pelo desatendimento a esses ditames constitucionais. A preventiva foi decretada consoante peça que se encontra às folhas 39 e 40. Aludiu-se à ordem pública e, aí, apontou-se a necessidade de prevenir a repetição de fatos criminosos. Mais do que isso, fez-se referência ao acautelamento do meio social e à credibilidade da Justiça, consignando-se a gravidade do crime e a repercussão. Pois bem, têm-se parâmetros reveladores, a princípio, de agentes episódicos – servidores públicos que teriam claudicado na arte de proceder, incidindo em práticas criminosas. Supor-se a continuidade dos delitos é passo demasiadamente largo, contrariando a ordem natural das coisas, o afastamento da atividade desenvolvida na Administração Pública, na fiscalização própria às relações jurídicas concernentes aos tributos. O objetivo de acautelar o meio social surge com dose maior de subjetivismo, servindo, na forma em que vazado, à prisão de todo aquele que seja acusado, simplesmente acusado, de um ato delituoso, invertendo-se, com isso, valores, presumindo-se não o que normalmente ocorre, mas o extravagante, o excepcional, a postura à margem do que se espera do homem médio. Sob o ângulo da credibilidade da Justiça, o que asseverado condiz com a punição, então, a ferro e fogo, tornando-a meio de justiçamento e não órgão que implique a eqüidistância desejada na atuação do próprio Estado. Pouco importa a gravidade do crime e a impressão no meio social. Quanto mais grave o crime e maior a reverberação, tem-se a conveniência de resguardar-se as prerrogativas do acusado, as franquias, a intangibilidade da ordem jurídica constitucional. Com esses enfoques é que a Justiça se impõe e se torna acreditada perante os concidadãos.
Relativamente à instrução penal, não fosse a particularidade de já achar-se encerrada com decreto condenatório devidamente formalizado, constata-se, no pronunciamento judicial atinente à preventiva, haver sido acionada capacidade intuitiva. Simplesmente supôs-se que o paciente em liberdade viria a “inutilizar, modificar, alterar ou mesmo impedir a obtenção de provas de seus crimes”. Em suma, o raciocínio desenvolvido convém para justificar a prisão em qualquer caso, mormente quando se trate de pessoa que, em passado recente, haja atuado no âmbito da Administração Pública. A problemática da instrução penal, sob o prisma da preventiva, deve ser inserida num contexto jurídico a partir de dados concretos, dados já existentes, imaginando-se, aí sim, a continuidade de procedimento visando a frustrar a apuração dos fatos. É certo que se remeteu à notícia, simples notícia, de que se procurara obstaculizar o cumprimento de carta rogatória. Todavia não se conta com uma linha sobre a imputação de ato dos acusados, muito menos do paciente. A inserção do trecho fez-se com generalidade imprópria, razão pela qual não se mostra idônea a alicerçar a prisão. Indispensável seria a menção de fato concreto e não de notícia, talvez mesmo por ouvir dizer.
Por último, na preventiva, cogitou-se da possibilidade de fuga. Ora, esta é sempre factível, consubstanciando até mesmo um direito natural do homem, no que se sinta injustiçado por certa determinação. Lançou-se, no procedimento mediante o qual foi formalizada a preventiva, serem os acusados primários, com profissão certa e endereço conhecido, mas se potencializou a posse de recursos e, então, partiu-se para a premissa de que, em liberdade, poderiam deixar o País. Vale registrar o que já decidido pela Corte sobre a fuga e a ausência de base para, via suposição, chegar-se à custódia.
HABEAS CORPUS – CUSTÓDIA PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO INCONVINCENTE.
Decreto de prisão preventiva fundamentado principalmente no temor da evasão do paciente. A custódia cautelar não pode se basear em conjecturas, mas na real necessidade de constrição que justifique a excepcionalidade da medida. Precedentes do STF.
Recurso provido (Recurso em Habeas Corpus nº 67.069-5, Segunda Turma, relator ministro Francisco Rezek, Diário da Justiça de 31.03.1989)
Vê-se que a preventiva, decretada em abril de 2003, o foi à margem do arcabouço normativo de regência.
Diante de novo título a respaldar a custódia, ao contrário da óptica externada no julgamento procedido no Superior Tribunal de Justiça, impossível é ter-se como implicitamente adotados os fundamentos do ato pretérito, da prisão no início do processo. Em jogo a liberdade de ir e vir, a formalização do pronunciamento, a clareza da deliberação é exigível, descabendo presumir-se, ou seja, conceber decisão implícita. Na longa e substanciosa sentença proferida, quanto à dosimetria da pena (folha 223 a 260), proclamou-se:
Nego aos réus o direito de apelar em liberdade, exceto com relação aqueles que tiveram sua pena privativa de liberdade substituída. Recomendem-se os réus na prisão em que se encontram e expeçam-se os mandados de prisão para os réus em liberdade, por força agora de sentença condenatória (folha 259).
O que consignado não se coaduna com os novos ares constitucionais. É próprio à quadra de exceção, como aquela vivenciada quando veio à balha, em penada única, via decreto-lei do então Presidente da República, o Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Neste, em textos não recepcionados pela Carta de 1988, encontra-se base para a negativa de viabilização do apelo em liberdade. O teor da sentença se coaduna com o artigo 393 do Código de Processo Penal:
Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:
I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;
II – ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.
O teor da sentença é harmônico com o artigo 585 do Código de Processo Penal:
Art. 585. O réu não poderá recorrer da pronúncia senão depois de preso, salvo se prestar fiança, nos casos em que a lei a admitir.
O teor da sentença está condizente com o extravagante pressuposto de recorribilidade versado no artigo 594 do Código de Processo Penal:
Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.
O teor da sentença está afinado com o preceito do artigo 595, também do Código de Processo Penal:
Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.
O teor da sentença também não discrepa da previsão óbvia do artigo 596 do Código de Processo Penal:
Art. 596. A apelação da sentença absolutória não impedirá que o réu seja posto imediatamente em liberdade.
Por último, o teor da sentença conforma-se com o artigo 669:
Art. 669. Só depois de passar em julgado, será exeqüível a sentença, salvo:
I – quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança;
II – quando absolutória, para o fim de imediata soltura do réu, desde que não proferida em processo por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a 8 (oito) anos.
A Carta da República, entretanto, está no ápice da pirâmide das normas jurídicas. Dotada de rigidez, a todos impõe-se e os dispositivos do Código de Processo Penal, pedagogicamente transcritos nesta decisão, não guardam harmonia com as garantias acima referidas. É hora de dar-se concretude aos ditames constitucionais, pagando-se, assim, o preço por viver-se em um Estado Democrático de Direito. Jamais é demasia frisar-se que, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele. A prisão, tal como formalizada, surge temporã.
Estendo a liminar não só aos três requerentes – Axel Ripoll Hamer, Amauri Franklin Nogueira Filho e Carlos Eduardo Pereira Ramos, como também, a partir do disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal, aos demais co-réus que estejam sob a custódia do Estado. Observe-se o fecho da decisão, no que implicou a expedição de alvará de soltura com as cautelas legais. A extensão se faz nos moldes estabelecidos quanto ao paciente Sérgio Jacome de Lucena, ou seja, caso os beneficiários não se encontrem presos por motivo diverso do retratado na prisão preventiva formalizada no Processo nº 2003.5101505176.5 da Seção Judiciária da Justiça Federal do Rio de Janeiro ou na sentença ainda não coberta pela cláusula da irrecorribilidade proferida, nesse processo, pela 3ª Vara Federal da citada Seção.
3. Publique-se.
Brasília, 20 de junho de 2004.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator