Leia os votos dos ministros Ellen Gracie e Cezar Peluso no julgamento sobre porte de arma desmuniciada
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 81.057-8 SÃO PAULO
RELATORA ORIGINÁRIA: MIN. ELLEN GRACIE
RELATOR PARA O ACÓRDÃO: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
RECORRENTE: LOURIVAL DANTAS ROTEAS
ADVOGADO: PGE-SP – SERGIO GARDENGHI SUIAMA
RECORRIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Voto da ministra Ellen Gracie (relatora)
A Senhora Ministra Ellen Gracie – (Relatora): Conforme consta dos autos, o paciente foi flagrado portando um revólver marca Taurus, calibre 32, sem possuir licença para tanto. Portava a arma na cintura e foi flagrado transitando com ela em local público. Encontrava-se foragido da Justiça diante de condenação anterior por crime de roubo.
O fato de estar desmuniciado o revólver não o desqualifica como arma, tendo em vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação.
Para a configuração do crime inscrito no art. 10, caput da Lei nº 9.437/97, basta a ocorrência de qualquer das condutas nele discriminadas – possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo de uso permitido – sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
O crime é de mera conduta e, segundo dicção de Fernando Capez, de perigo abstrato, não tendo a lei exigido a efetiva exposição de outrem a risco, sendo irrelevante a avaliação subsequente sobre a ocorrência de perigo à coletividade. Nos crimes de perigo abstrato, segundo Capez, “a opção política do Poder Legislativo em considerar o fato, formal e materialmente, típico independentemente de alguém, no caso concreto, vir a sofrer perigo real, não acoima a lei definidora de atentatória à dignidade humana. Ao contrário. Revela, por parte do legislador, disposição ainda maior de tutelar o bem jurídico, reprimindo a conduta violadora desde o seu nascedouro, procurando não lhe dar qualquer chance de desdobramento progressivo capaz de convertê-la em posterior perigo concreto e, depois, em dano efetivo. Trata-se de legítima opção política de resguardar, de modo mais abrangente e eficaz, a vida, a integridade corporal e a dignidade das pessoas, ameaçadas com a mera conduta de sair de casa ilegalmente armado. Realizando a conduta descrita no tipo, o autor já estará colocando a incolumidade pública em risco, pois protegê-la foi o desejo manifestado pela lei. Negar vigência ao dispositivo nos casos em que não se demonstra perigo real, sob o argumento de que atentaria contra a dignidade da pessoa humana, implica reduzir o âmbito protetor do dispositivo, com base em justificativas no mínimo discutíveis. Diminuindo a proteção às potenciais vítimas de ofensas mais graves, produzidas mediante o emprego de armas de fogo, deixando-as a descoberto contra o dano em seu nascedouro, o intérprete estará relegando o critério objetivo da lei ao seu, de cunho subjetivo e pessoal. Privilegia-se a condição do infrator em detrimento do ofendido, contra a expressa letra da lei. A presunção da injuria, por essa razão, caracteriza mero critério de política criminal, eleito pelo legislador com a finalidade de ofertar forma mais ampla e eficaz de tutela do bem jurídico.” (“Arma de Fogo – Comentários à Lei nº 9.437, de 20.2.1997”, ed. Saraiva, 1997, págs. 25/26)
Segundo Damásio de Jesus, a incolumidade pública representa o objeto jurídico principal e imediato da norma. Como objetos mediatos e secundários estão a vida, a incolumidade física e a saúde dos cidadãos (“Crimes de Porte de Arma de Fogo e Assemelhados”, Ed. Afiliada, ABDR).
Heleno Cláudio Fragoso, ao tratar dos crimes contra a incolumidade pública previstos no Código Penal, classifica-os como “infrações penais em que a ação delituosa atinge diretamente um bem ou interesse coletivo, ou seja a segurança de todos os cidadãos ou de número indeterminado de pessoas” (“Lições de Direito Penal”, 3º vol., 2ª ed., José Bushatsk, pág.765).
Vê-se, assim, que o objetivo do legislador foi antecipar a punição de fatos que apresentam potencial lesivo à população – como o porte de arma de fogo em desacordo com as balizas legais -, prevenindo a prática de crimes como homicídios, lesões corporais, roubos etc. E não se pode negar que uma arma de fogo, transportada pelo agente na cintura, ainda que desmuniciada, é propícia, por exemplo, à prática do crime de roubo, diante do seu poder de ameaça e de intimidação da vítima.
Diante do exposto, nego provimento ao recurso ordinário.
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E S C L A R E C I M E N T O
APARTE
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora) – Sr. Presidente, apenas para esclarecimento dos Colegas que aqui não estavam quando se iniciou o julgamento. Gostaria de referir que este caso diz respeito a um paciente, pelo que me recordo do relatório, já condenado anteriormente por roubo, que portava uma arma desmuniciada.
Peço todas as vênias ao eminente Ministro Sepúlveda Pertence, como sói acontecer, tem uma brilhante fundamentação teórica, mas a mim me parece que tanto o legislador quanto o aplicador da lei precisam estar atentos à realidade sobre a qual vão incidir os seus pronunciamentos. A realidade brasileira é, hoje, infelizmente, diferente daquela que gostaríamos que fosse; a criminalidade, nas cidades grandes em especial, é muito acentuada; e acredito que haveria alguma dificuldade em aceitar-se um alargamento, enfim, um abrandamento desse entendimento que inicialmente esposei, dadas as circunstâncias de que a população em geral, o cidadão, na rua, dificilmente terá condições de argumentar com aquele que o aborda, portando uma arma, para indagar se ela está ou não municiada. Se seguirmos nessa senda, poderemos encontrar outras dificuldades ainda: quem sabe a arma está municiada, porém o cano está enferrujado e não teria condições de efetuar o disparo.
O Senhor Ministro Sepúlveda Pertence – (Presidente) – Ministra Ellen Gracie, apenas insisto — voltando à discussão de decênios, sobre o roubo com a arma de brinquedo — em que ninguém põe em dúvida que arma de brinquedo, arma enferrujada ou arma desmuniciada podem servir de instrumento de intimidação e caracterizar a ameaça, elementar do roubo. Estamos discutindo a incriminação autônoma do porte de arma que não é arma ou que é uma arma, cuja utilização — à falta de munição disponível — era impossível.
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora) – Na verdade, o perceptível como arma é o revólver, seja ele de brinquedo, desmuniciado ou não. Parece-me que o legislador, quando proibiu o porte desse tipo de instrumento – arma -, pretendia que todo e qualquer artefato que pudesse produzir uma ameaça à segurança pública, intimidação àquele que fosse abordado com a utilização desse instrumento fosse penalizado daquela forma, agora agravada pelo recentemente editado Estatuto do Desarmamento.
Por isso, Ministro Sepúlveda Pertence – mais uma vez louvando o brilho teórico que empresta a seus votos -, com os pés fincados na realidade deste País, mantenho a decisão anterior.
Voto-vista do Ministro Cezar Peluso
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO:
1. Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus, contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça que confirmou condenação do recorrente pelo crime de porte de arma de fogo desmuniciada.
O recorrente aduz que o porte de arma desmuniciada, “incapaz de gerar dano a outrem, não sendo causa de qualquer risco ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consistente na incolumidade pública“, seria atípico, pois a tipicidade material somente se daria quando houvesse dano, ou risco de dano, ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal. Daí, o pedido de trancamento da ação.
O parecer ministerial, da lavra do Dr. Raimundo Francisco Ribeiro de Bonis, Subprocurador-Geral da República, é no sentido do improvimento do recurso, não só porque a arma desmuniciada já ofereceria, potencialmente, risco de lesividade ao bem jurídico – paz social -, como porque o fato de o recorrente já ter sido, antes, condenado por crime de roubo, demonstraria a potencialidade de conduta lesiva à mesma paz social.
A Ministra Relatora nega provimento ao recurso, por entender que
“O fato de estar desmuniciado o revólver não o desqualifica como arma, tendo em vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, causando ferimentos graves ou morte, mas também, na grande maioria dos casos, no seu potencial de intimidação.
…
O crime é de mera conduta e, segundo dicção de Fernando Capez, de perigo abstrato, não tendo a lei exigido a efetiva exposição de outrem a risco, sendo irrelevante a avaliação subsequente (sic) sobre a ocorrência de perigo à coletividade (…)
…
Vê-se, assim, que o objetivo do legislador foi antecipar a punição de fatos que apresentam potencial lesivo à população – como o porte de arma de fogo em desacordo com as balizas legais -, prevenindo a prática de crimes como homicídios, lesões corporais, roubos, etc. E não se pode negar que uma arma de fogo, transportada pelo agente na cintura, ainda que desmuniciada, é propícia, por exemplo, à prática do crime de roubo, diante do seu poder de ameaça e de intimidação da vítima” (fls.3-4).
Pediu vista o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE.
Sua Excelência, após notar que a superveniente Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) em nada atingiu o presente caso, votou pelo provimento do recurso.
Apoiado na moderna concepção do Direito Penal, que “dá realce primacial aos princípios da necessidade e da lesividade do fato criminoso“, seu voto releva a necessidade de que o fato típico implique lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado, ainda que se trate de crime de mera conduta (p. 5). Por essa razão, e com apoio na doutrina de LUIZ FLÁVIO GOMES e WILLIAM TERRA, salienta que os princípios da ofensividade e da lesividade cobram, no campo dos delitos de posse, a disponibilidade (p. 6).
Lesividade e ofensividade, entendidos como princípios gerais contemporâneos, de interpretação da lei penal, devem prevalecer sempre que os comporte a regra incriminadora. “Na figura criminal cogitada“, continua Sua Excelência, “os princípios bastam para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo” (p. 7).
No porte de arma, distingue duas situações à luz do princípio da disponibilidade:
“Se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo.
Ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica” (p. 8).
Estando a arma, no caso, desmuniciada, e não fazendo, a denúncia, menção à disponibilidade de munições, dá Sua Excelência pela atipicidade da conduta e, daí, provê ao recurso, para deferir o habeas corpus e trancar a ação penal.
2. Pedindo vênia à ilustre Ministra ELLEN GRACIE, meu voto acompanha o do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE.
3. Gostaria de advertir desde logo que o bem jurídico-penal tutelado pelo crime descrito no art. 10 da Lei nº 9.437/97[1] não pode identificado com a paz social, nos termos propostos pelo parecer do douto Subprocurador, sob pena de se esvaziar a própria categoria dogmática.
A paz social é atingida toda vez que se comete um ilícito, e não só quando seja este de natureza criminal. E, por buscar o restabelecimento da ordem jurídica violada, conta o Direito com múltiplos instrumentos, dentre os quais a sanção penal, mas também, entre outros, a reparabilidade do dano extrapenal, medidas constritivas patrimoniais, sanções administrativas, etc. O que justificaria a opção do legislador, dentre todos os instrumentos de resposta normativa, pela ameaça da sanção penal, precisamente aquela que de regra atinge um dos mais importantes direitos individuais fundamentais, que é a liberdade (art. 5º, caput, da Constituição da República), enquanto bem jurídico-penal alcançado pela sanção?[2]
A resposta é uma só: por exigência de proporcionalidade – afinal, trata-se da mais grave das sanções do sistema jurídico -, somente os atentados mais conspícuos contra os bens, valores e interesses igualmente mais importantes ao juízo do mesmo sistema, ou o que hoje chamamos de bens jurídico-penais.
Foi por essa via, é bom lembrar, que se estruturou todo o arcabouço da moderna teoria do bem jurídico-penal, que, desde as origens, com FEUERBACH, sempre teve por finalidade prevenir o abuso incriminador mediante estabelecimento de critérios, seguros e imanentes ao sistema, aptos a instaurar e avaliar relação de proporcionalidade entre a gravidade da sanção penal e o objeto tutelado pela norma incriminadora.
Não há como identificar a paz social ao objeto jurídico específico do delito de que se trata, assim porque ela subjaz ferida em todos os crimes – as incriminações pretendem, em última instância, como é óbvio, preservar ou restabelecer a paz social -, como porque doutro modo se aniquilaria a própria idéia dogmática do bem jurídico-penal, elaborada pelo esforço de doutrinadores, do porte de FEUERBACH, BIRNBAUM, BINDING, VON LISZT, SAX, ROXIN, POLAINO NAVARRETE, BRICOLA, ANGIONI e FERRAJOLI, dentre outros, como relevante instrumento classificatório, sistemático, exegético, dogmático e crítico.[3] Se fora concebido, aliás, com tamanha vagueza e abstração, o bem jurídico seria incapaz de exercer qualquer dessas funções metodológicas, a começar pela mais simples, a classificatória.
ROXIN acentua, exatamente, esse ponto, afirmando que é função do Direito, como um todo, assegurar a convivência pacífica, e do Direito Penal, como instrumento excepcional, assegurar os bens jurídicos fundamentais, verbis:
“o hodierno Estado democrático de direito, enquanto laico e fundado na soberania popular, não pode perseguir o aperfeiçoamento moral dos cidadãos adultos, mas deve limitar-se a assegurar as condições de uma convivência pacífica (…); o direito penal, ao fornecer seu contributo em tal direção, deve antes de tudo garantir os bens jurídicos fundamentais que estão sob os olhos de todos, como a vida, a integridade física, a liberdade, o patrimônio, etc.” (grifei).[4]
Mas a só identificação de um bem jurídico fundamental como núcleo da tutela penal ainda não satisfaria à proporcionalidade que deve governar a relação entre a restrição da liberdade (sanção penal) e o fato criminoso. Isto é, não basta que o tipo penal esteja disposto à tutela de um bem jurídico fundamental; é preciso mais, é necessário que a conduta seja idônea a lesar ou pôr em perigo o mesmo bem, o que se traduz, para empregar termos contemporâneos, na danosidade da conduta.
E, aqui, um corte necessário, que já foi apontado pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE.
Como afirmei, várias funções são atribuídas ao bem jurídico dentro da Teoria Geral do Direito Penal. Uma delas, por exemplo, posta em relevo pelas concepções constitucionais do bem jurídico, é a função crítica, que consiste em avaliar a legitimidade das opções do legislador penal em confronto com a escala dos valores constitucionais: escolha do bem e grau de antecipação da tutela. Outra, é a dogmática, que permite estabelecer de fato o limite da relação com a ofensa (lesão ou colocação em perigo).[5]
Não é mister, para o deslinde do caso, que se avalie a norma incriminadora sob o primeiro desses ângulos, o da legitimidade constitucional do bem jurídico tutelado e do grau de antecipação da tutela, pois o uso do conceito de bem jurídico como instrumento dogmático – de interpretação – já basta para afastar a tipicidade da conduta imputada ao recorrente.
E o critério interpretativo da ofensividade, ressaltado pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, é derivação do princípio da proporcionalidade e está à base da concepção do tipo penal como protetor de bens jurídicos fundamentais.
Nesse sentido, TERESA AGUADO CORREA, em monografia dedicada ao princípio da proporcionalidade no Direito Penal, sustenta que “o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é uma concreção do princípio da necessidade e, por isto, se deriva do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (…). Ao ser a função do Direito penal a proteção de bens jurídicos (penais), tão só será necessário e proporcional quando exista um bem jurídico (penal) a proteger frente a comportamentos que o coloquem em perigo ou que o lesionem“. [6]
Como explica ANGIONI, o princípio da proporcionalidade, imanente à idéia de justiça e, portanto, de justiça penal, adquire, perante esta, o significado de que “uma reação, para ser legítima, deve ser proporcional à ação (ofensiva). Essa proposição, que é explicitamente adotada em matéria de legítima defesa, ‘é característica fundamental ou limite interno teleológico de qualquer teoria racional sobre a função da pena (retribuição, prevenção geral, prevenção especial)’. Daí que, qualquer que seja a função atribuída à pena na Constituição, para qualquer delas vale o princípio da proporcionalidade que se encontra mediatamente constitucionalizado por implicação lógica“.[7]
E a primeira implicação, como sugeri, é a de que “na operação de comparação entre o objeto da tutela (o bem jurídico tutelado) e o objeto da reação (o bem atingido pela sanção)“, o critério guia deve ser o da proporcionalidade.[8]
Mas não é só.
A proporcionalidade também deve comandar a relação entre o bem tutelado e o bem jurídico atingido pela pena (a liberdade individual), no que diz respeito ao grau de antecipação da tutela: lesão ou perigo. Lesão, entendida como destruição, perda, compressão, ou diminuição de um bem. E perigo, visto como probabilidade de lesão do bem jurídico.
A antecipação da tutela penal aos momentos antecedentes ao da lesão somente será justificada quando se puder estabelecer relação de proporcionalidade entre a aplicação da pena (lesão do direito à liberdade do condenado) e o perigo (probabilidade de lesão do bem jurídico tutelado pela norma penal) causado pela conduta incriminada.
E é nesta seara que se fala, então, em princípio da ofensividade, ou da lesividade, como critério, não só de política-criminal, mas, no que interessa ao caso, de interpretação do tipo penal, como já afirmava o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE.
“Si tratta di un principio che risale ad Aristotele e ad Epicuro, e che accomuna l´intera cultura penale illuministica: da Hobbes, Pufendorf e Locke a Beccaria, Hommel, Bentham, Pgano e Rogmanosi“, ensina FERRAJOLI, “i quali identificano tutti nel danno recato ad altri le ragioni, i criteri e le misure delle proibizioni e delle pene“.[9]
FERRAJOLI mostra ainda que, na Itália, o princípio da ofensividade brota da interpretação lógica e teleológica de um conjunto de normas, as quais, observo, encontram reflexo quase especular no ordenamento jurídico pátrio:
“da un lato, come si è detto, in base al valore costituzionale associato alla libertà personale dall’ art. 13 della Costituzione [artigo 5º, caput, da Constituição Federal], il quale esclude come meritevoli di tutela penale beni di valore inferiore ai costi delle privazioni di libertà richieste da tale tutela; dall´altro in base all´art. 49, 2o comma c.p. [nosso artigo 17 do Código Penal], che esclude la punibilità ‘quando, per la inidoneità dell´azione o per la inesistenza dell´oggetto di essa, è impossibile l´evento dannoso o pericoloso’, nonché dell’art. 43 c.p. [nosso artigo 18, inciso I, do Código Penal], che definisce il ‘delito doloso’ come previsione e volontà dell’ ‘evento dannoso o pericoloso che è il risultato dell´azione od omissione e da cui la legge fa dipendere l´esistenza del delitto“.[10]
Igual coisa afirma a professora espanhola TERESA AGUADO CORREA, ao observar que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos diz com o princípio da ofensividade, no sentido de que todo delito deve comportar lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico, “exigindo no momento da aplicação da lei penal que o comportamento concreto que se está julgando haja lesado ou colocado em perigo o bem jurídico“.[11] Donde, refere uma “dupla influência” do princípio da lesividade: sobre o legislador, a quem incumbe a escolha do bem jurídico por tutelar, e sobre o juiz, “o qual não se pode conformar com a subsunção formal do fato no comportamento descrito pela norma, senão que terá de comprovar que tal comportamento lesou ou colocou em perigo o bem jurídico protegido através de dita norma, e acaso assim não seja, deverá declarar sua atipicidade” (grifei).[12] E, conclui a autora, é dessa forma que o bem jurídico “adquire um papel central na interpretação dos tipos penais, falando-se que, no momento de aplicação ou interpretação judicial da lei penal, cumpre ele uma ‘função dogmática’, ‘função interpretativa’, ‘função de guia da interpretação’ ou ‘função dogmática e exegética’“.[13]
A ofensa (lesão ou perigo) ao bem jurídico deve ser tal, que possa estar em justa proporção com a intensidade da pena, ou seja, com a natureza da lesão ao bem jurídico consistente na liberdade individual do condenado. E esse princípio – que é, como se vê, decorrência do princípio da proporcionalidade – constitui o critério que permite evitar aqui, parodiando MOCCIA, a adequação típica de “condutas por si só insignificantes sob o ponto de vista da danosidade social”, atendendo, assim, à “regra da ofensividade“.[14]
Cumpre, pois, ponderar se, neste caso, a conduta pôs, comprovadamente, em perigo – porque lesão não houve – o bem jurídico protegido pelo tipo penal descrito no art. 10 da Lei nº 9.437/97, designadamente a incolumidade pública[15], em cujo âmbito conceitual só cabe “a situação concreta de perigo ou de dano para a vida, a saúde ou o patrimônio das pessoas, ainda que não identificáveis“, sem o que não se estará na presença de um bem jurídico, senão de “uma verdadeira e simples função“[16]
Conforme acertada lição de MIGUEL REALE JÚNIOR, “a situação perigosa pode, como sucede nos crimes contra a incolumidade pública, colocar em risco de dano a um número indeterminado de pessoas, sendo idônea a lesar a segurança geral“.[17] Além disso, “o perigo deve estar ínsito na conduta, segundo o revelado pela experiência“.[18]
Enquanto uma arma municiada pode representar risco de dano, ou perigo, à incolumidade pública, à segurança coletiva enfim, uma arma desmuniciada já não goza, por si só, dessa aptidão. O mero porte de arma de fogo desmuniciada não tem capacidade para meter em risco o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.
Ninguém o nega. E é esta a razão mesma por que aqueles que pregam a tipicidade do porte de arma desmuniciada têm, para lhe encontrar algum apoio, de se socorrer do argumento frágil do poder de intimidação, não em termos absolutos, mas quanto à prática de outros delitos. Mas decerto não é esse o núcleo protetor da norma incriminadora em questão, como bem notado pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, porque, se o fosse, o porte de facas e outros objetos cortantes, por exemplo, também teria sido tipificado, dado seu poder intimidador. Nem é lícito ir tão longe, a ponto de seccionar o nexo entre a norma incriminadora e o bem jurídico tutelado e, com isso, descambar num Direito Penal de mera desobediência, ou na administrativização do Direito Penal,[19] coisa que, como procurei demonstrar, é incompatível com a Constituição, por via de insulto ao princípio da proporcionalidade.
Por todas essas razões, estou em que o porte de arma de fogo desmuniciada não entra no âmbito da tipicidade do art. 10 da Lei nº Lei n. 9.437/97 e, daí, ser atípica a conduta atribuída ao recorrente, pela qual, note-se, já foi até condenado.
4. Mas quadra um comentário final acerca da referência ao fato de o recorrente já ter sido condenado pela prática de roubo.
Conforme lecionam NILO BATISTA e RAÚL ZAFFARONI, “enquanto para alguns autores, o delito constitui uma infração ou lesão jurídica, para outros ele constitui o signo ou sintoma de uma inferioridade moral, biológica ou psicológica. Para uns, seu desvalor – embora haja discordância no que tange ao objeto – esgota-se no próprio ato (lesão); para outros, o ato é apenas uma lente que permite ver alguma coisa daquilo onde verdadeiramente estaria o desvalor e que se encontra em uma característica do autor. Estendendo ao extremo esta segunda opção, chega-se à conclusão de que a essência do delito reside numa característica do autor, que explica a pena. O conjunto de teorias que este critério compartilha configura o chamado direito penal de autor“.[20]
Essa forma tradicional, ou pura, do direito penal de autor, recebeu agora roupagem nova, consoante sublinham os doutrinadores, sob a forma de direito penal do risco, com a antecipação e o desvio da tipicidade na direção de atos de tentativa e, até, preparatórios, “o que aumenta a relevância dos elementos subjetivos e normativos dos tipos penais, pretendendo assim controlar não apenas a conduta mas também a lealdade do sujeito ao ordenamento. Em algum sentido, tal direito tende a incorporar uma matriz de intervenção moral, análoga à legislação penal das origens da pena pública, com o acrescido inconveniente de presumir dados subjetivos“.[21]
Segundo bem o percebeu MIGUEL REALE JÚNIOR, a repressão aos estados de ânimo tende a punir a pessoa, “mesmo sem a prática de atos preparatórios pela simples razão de se detectar a probabilidade de vir no futuro a cometer crimes. A periculosidade sempre foi o recurso dos sistemas políticos totalitários, como se deu com o nazismo e o comunismo, em que alcançavam relevo a predisposição de agir em ofensa ao ‘são sentimento do povo alemão’ ou aos ‘interesses da coletividade socialista“.[22]
Um dos corolários do princípio da lesividade (as condutas incriminadas devem representar lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico) está, precisamente, em preexcluir o direito penal de autor. Ao vetar a “incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico“,[23] veta, por conseqüência, possam ser reputadas criminosas condutas imorais, antiéticas ou tão-somente desviadas, que não atinjam bens jurídicos alheios. Em síntese, impede se crie um direito penal repressor de determinados “modos de ser“.
Afirmar a tipicidade do comportamento atribuído ao recorrente pelo fato de já ter sido condenado pela prática de roubo é descair para esse campo interdito de incriminação de conduta que, podendo até aparecer desviada, não importa lesão nem perigo a bens jurídicos alheios. Equivaleria a punir o recorrente pelo seu (aparente) “modo de ser” – puni-lo pelo que (aparentemente) “é” e, não pelo que “fez” -, já que nenhum perigo ou lesão causou a bem jurídico de quem quer que seja.
A condenação anterior não tem repercussão alguma no juízo de adequação típica que ora se formula. Poderia ter relevância, acaso caracterizadas a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade da conduta, em momento posterior, o da dosimetria da pena (circunstância judicial, agravante ou causa de aumento da pena), como, aliás, o foi (cf. sentença condenatória, fls. 106). O direito penal de autor não encontra guarida em nenhum sistema penal fincado no Estado de Direito, comprometido, que é, com a dignidade da pessoa humana e com a garantia de seus direitos fundamentais, e, sobretudo, em nosso ordenamento, onde a presunção vigente é, ao reverso do que se propugna com a referência a tal condenação, a de inocência.
Tais observações tendem apenas a chamar a atenção para o perigo que contamina toda concepção de Direito Penal afastada da vocação de tutela de bens jurídicos, o qual, como supus haver demonstrado, facilmente resvala em visão penal autoritária e moralizante, oposta à concepção democrática, (por isso) tolerante, laica, secular e reverente a todas as formas de diversidade (moral, religiosa, étnica, racial, cultural, etc.), consagradas na Constituição da República (arts. 1º, 3º e 5º, especialmente caput e incs. I, IV, VI, VIII e IX). O direito penal do autor é inimigo irreconciliável do Estado Democrático de Direito.
5. Por essas razões, com a vênia da ilustre Ministra Relatora, acompanho o voto do Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, para dar provimento ao recurso, declarando atípica a conduta atribuída ao recorrente e, em conseqüência, concedendo a ordem para trancar a ação penal. É como voto.
[1] “Possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena – detenção de uma dois anos e multa.”
[2] A partir deste questionamento, em apertada síntese, é que se construíram, inclusive, as teorias que exigem fundamentação constitucional para que um bem jurídico possa ter relevância penal, ou seja, para que seja merecedor da tutela penal (cf., por todos, CUNHA, Maria da Conceição Ferreira. Constituição e crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995). Neste sentido, ponderava Bricola, considerado precursor desta concepção na doutrina italiana, que “a Constituição atribui valor preeminente à liberdade pessoal na medida em que afirma a sua inviolabilidade (art. 13 da Constituição italiana) logo na abertura da Parte I (“Direitos e deveres dos cidadãos”) do Título I (“Relações civis”). ‘Resulta daí que a máxima restrição da liberdade pessoal, que é aquela que se opera a título efetivo ou potencial através da sanção penal, não pode ser efetuada senão como extrema ratio, daí a conclusão de que a sanção penal só pode se adotada em virtude da lesão de um bem, senão de igual valor àquele sacrificado (a liberdade pessoal), ao menos dotado de relevância constitucional” (apud ESTELLITA, Heloisa. A tutela penal e as obrigações tributárias na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 61-2).
[3] Cfr. ANGIONI, Francesco. Contenuto e funzioni del concetto di bene giuridico. Milano: Giuffè, 1983, p. 6.
[4] Claus Roxin apud FIANDACA, Giovanni. Il “bene giuridico” come problema teórico e come critério di política criminale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1982, p. 46.
[5] Angioni, Francesco. Contenuto e funzioni del concetto di bene giuridico. Milao: Giuffrè, 1983, p.6.
[6] AGUADO CORREA, Teresa. El principio de proporcionalidad em derecho penal. Madrid: EDERSA, 1999, p.165-6.
[7] Idem, apud, ESTELLITA, Heloisa, op. cit., p.66-7.
[8] Idem, ibid.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. 4ed., Roma: Laterzi, 1997, p.468.
[10] FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 733.
[11] AGUADO CORREA, Teresa. El principio de proporcionalidad em derecho penal, op. cit., p. 202.
[12] Idem, ibid.
[13] Idem, ibid.
[14] MOCCIA, Sergio. Il diritto penale tra essere e valore: funzione della pena e sistematica teleologica. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 187
[15] Ou um certo nível de segurança pública, como querem Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira (cf. Arma de fogo desmuniciada configura crime? Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n.12, 2002, p. 5-9).
[16] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 217.
[17] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v.1, p. 278.
[18] Idem, p. 279.
[19] A expressão é de Miguel Reale Júnior: “A administrativização do Direito Penal torna a lei penal um regulamento, sancionando a inobservância a regras de convivência da Administração Pública, matérias antes de cunho disciplinar. No seu substrato está a concepção pela qual a lei penal visa antes a ‘organizar’ do que a proteger, sendo, portanto, destituída da finalidade de consagrar valores e tutelá-los” (idem, p. 21).
[20] ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, v. I, p. 131.
[21] Idem, p.133.
[22] REALE JÚNIOR, Miguel, op. cit., p. 34, grifei.
[23] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3ed., Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 92 e ss.