Justiça sobre as águas do Amazonas
Catuiara significa "juiz bom" em nheengatu, língua geral do tronco tupi que se difundiu especialmente no nordeste da região amazônica. A palavra também significa, agora, o acesso à Justiça para cerca de 750 mil brasileiros que vivem nas comunidades ribeirinhas do Estado do Amazonas. É com esse nome que foi batizado o barco que vai levar não apenas Justiça, mas também cidadania para pessoas isoladas geograficamente que não constam das estatísticas, que nascem e morrem sem que um dia o Estado tenha sido, ao menos, informado da existência delas.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Maurício Corrêa, participou da inauguração do barco no domingo (18/4), em Manaus, e ficou maravilhado com o projeto "Justiça Fluvial Itinerante", materializado no Catuiara. "Nada melhor para atender aos reclames da Constituição de 1988 que a ida da Justiça ao povo. Ela não pode ficar enclausurada, funcionar hermeticamente", afirmou Corrêa, para quem esse é "um verdadeiro foro que navega pelas águas do Amazonas".
O traçado do Catuiara segue o modelo das embarcações típicas da região. A sua função de juizado especial, no entanto, foi inspirada em um barco da Justiça do Amapá. Desenvolvido para funcionar como um pequeno tribunal, abriga, em seus 27 metros de comprimento, salas de espera, de audiência, de expedição de documentos, gabinetes do juiz e do promotor, cozinha, refeitório e seis camarotes, sendo duas suítes – tudo com ar-condicionado, vale dizer.
O barco custou 900 mil reais, dos quais 80% foram pagos pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ/AM) e 20% pelo Banco do Brasil. A bordo, leva, além do juiz e do promotor, três conciliadores, um técnico judiciário , para lidar com a burocracia, funcionários da secretaria de segurança , para expedir carteiras de identidade, e do cartório de registro civil.
Em seu primeiro dia de trabalho (19/4), o Catuiara deixou Manaus rumo à comunidade Julião, na qual moram 95 famílias, totalizando 400 pessoas em média. Entre o vilarejo e a capital, não há ligação por terra. O rio é que funciona como estrada. Os 32 quilômetros que os separam, em linha reta, foram percorridos em pouco mais de uma hora. Enquanto o barco deslizava pelo Rio Negro, a comunidade, que existe há cerca de 30 anos, preparava-se para ver um juiz pela primeira vez.
Bastou o Catuiara dar um apito ao se aproximar do povoado que apareceram crianças, mulheres e homens para ver o tão esperado barco. Eles tinham sido avisados, dias antes, que receberiam a visita da Justiça e aprontaram seus pedidos. O juiz Carlos Zamith, coordenador do projeto, sabia que o primeiro passo de sua equipe seria arrumar a documentação daquelas pessoas, muitas das quais nem sequer tinham certidão de nascimento. "Se o registrador não vai, eles não vêm", explicou Zamith, lembrando que a ausência do Estado e o isolamento cultural e geográfico fazem com que milhares de pessoas vivam sem ter esse primeiro documento, indispensável ao exercício da cidadania.
Corrêa descerra placa de inauguração do Catuiara (cópia em alta resolução)
Justiça flutuante no Rio Negro (cópia em alta resolução)
Novos cidadãos
A fila na entrada do barco se formou rapidamente. Alguns vieram dos arredores de Julião, de "rabetinha", uma canoa com motor. A sala de espera ficou lotada. Maria Raimunda Araújo, 44 anos, queria fazer seu divórcio. Já não via o ex-marido há 17 anos, mas não tinha nenhum registro do casamento. Ele rasgou a certidão na frente dela. José Pereira da Silva queria aposentar-se, mas não possuía o CPF (cadastro de pessoas físicas). Pelas contas dele, tinha 67 anos. Pelas do juiz, 69.
Fernanda Rufino Medeiros, 21 anos, grávida de quatro meses, queria fazer a carteira de identidade. "Preciso ter meu documento pra registrar meu filho. Com a carteira posso votar, casar, trabalhar", disse a amazonense, que demonstrou ter um nível de conscientização acima do da maioria que se reunia ali. "Pra entrar no hospital, tenho de ter meu documento. Com ele, tô salva", complementou.
Natural do município de Manacapuru, a cerca de 100 quilômetros de Manaus, Fernanda tinha apenas a cópia não-autenticada da certidão de nascimento. Teoricamente, ela teria de voltar à terra natal para tirar a segunda via do registro, para só então fazer a carteira de identidade. Usando o bom senso, o juiz Zamith examinou a cópia e viu que não havia sinais de adulteração nela. Fernanda iria, sim, ter a tão sonhada identidade. A fotografia foi feita em câmera digital, pelo juiz auxiliar da presidência do TJ/AM, Abraham Campos Filho, que participou do projeto do barco.
Quarenta e três anos foi o tempo que Maria Baraona dos Santos passou sem ter nenhum documento. Mãe de dez filhos, com idade entre 25 e cinco anos, ela estava ali para tirar sua certidão de nascimento. Os filhos tinham sido registrados pelo pai. "Meus pais não se interessaram em tirar minha certidão, nem eu", contou. Com a vinda da Justiça itinerante, ela teve a oportunidade de obter seu primeiro documento. "Em Manaus é caro, aqui é de graça", disse, sem saber que os cartórios são obrigados agora a fazer o registro de nascimento gratuitamente.
Se Maria Baraona levou 43 anos para ser registrada, a menina Dayse teve mais sorte. Demorou apenas três dias. "Eles trouxeram o bebê para o barco para que eu o conhecesse", contou o juiz Zamith. Dayse nasceu em um hospital público de Manaus, mas nem a mãe, de 15 anos, nem o pai, de 19, haviam registrado a filha na capital. Com poucas horas de vida, a menina fez a travessia de Manaus a Julião e ganhou, com a vinda do Catuiara, o documento que lhe deu cidadania.
Nas três horas em que o barco ficou atracado no vilarejo, a equipe atendeu a 50 pessoas. Além da orientação jurídica dada aos que queriam obter o CPF ou realizar o divórcio, foram feitas 22 carteiras de identidade, nove certidões de nascimento e uma audiência de retificação de registro. Tratava-se do pedido de Camilo Gama da Silva, pai de uma menina de 12 anos. O sobrenome correto da filha era "da Silva", e não, "Bastos", como estava na certidão de nascimento dela. O pai só soube do erro porque a professora da menina percebeu que ela tinha o sobrenome diferente do dos irmãos.
"É gratificante chegar a uma comunidade e resolver o problema de uma pessoa na hora, que sai dali satisfeita", avaliou o juiz Zamith, que retornará a Julião dez dias após o primeiro atendimento, para entregar os documentos solicitados pela população. "Considero-me uma espécie de desbravador, porque vamos visitar lugares que nunca viram um juiz", revelou o magistrado.
Uma das grandes vantagens do juizado especial itinerante é que ele elimina os custos de transporte, alimentação e hospedagem que os ribeirinhos teriam se tivessem de se deslocar até a sede de seus municípios, além de não ser necessária a contratação de advogado, como ocorre na Justiça comum. "O juizado permite que a pessoa fale diretamente com o juiz, sem a intervenção de um advogado", explicou Zamith. Outro ponto positivo é a rapidez no atendimento. "Manaus tem apenas dez juizados especiais, para uma população de quase dois milhões de habitantes. Há sobrecarga e demora de seis meses a um ano na solução de processos ", completou.
Fila em Julião para atendimento pela Justiça (cópia em alta resolução)
Maria Baraona: cidadania, afinal (cópia em alta resolução)
Dayse, de 3 dias, visita o Catuiara (cópia em alta resolução)
Líder comunitário
Almir Rodrigues Rabelo, 47 anos, foi o anfitrião do Catuiara. Aproximou-se do barco, falou com o juiz, com o promotor, ajudou a formar a fila de atendimento. É ele o presidente da comunidade Julião, reeleito para o mandato de quatro anos. Rabelo tinha todos os seus documentos, estava ali apenas para acompanhar o trabalho da Justiça.
Quando há conflitos na comunidade, as pessoas recorrem a ele, em busca de uma solução. "Como sou o presidente da comunidade, as pessoas me procuram quando há briga entre vizinhos", disse. Rabelo contou que os maiores problemas são causados pelo alcoolismo. Quando procurado, ele tenta conciliar as partes e, não raro, faz acareações entre elas. Para esses procedimentos, existe um lugar determinado: o centro social da vila, no pátio da escola, conhecido como "chapéu de palha", que, na verdade, é coberto com telhas de barro.
Dentre os casos que Rabelo teve de resolver, está o do volume do som do bar da comunidade. O barulho incomodava uma moradora. Apesar de a vila ter energia elétrica apenas das 18h às 22h, o aparelho funcionava com gerador independente. Rabelo analisou o caso e decidiu que ali deveria imperar a lei do silêncio. Após as 10 da noite, o volume da música passou a ser diminuído.
Rabelo também conduziu as investigações sobre o arrombamento de uma casa, da qual levaram um rádio. Não encontrou o culpado. Como o vilarejo não tem posto policial, em casos mais graves ele tem de recorrer à comunidade mais próxima, São Sebastião, ou, até mesmo, a Manaus, como ocorreu quando um vizinho agrediu outro com um facão. Agora, Rabelo está tentando resolver o problema de um morador que pagou por uma encomenda de toras de madeira antecipadamente e não recebeu o combinado.
Sob o olhar do promotor de Justiça Mário Ypiranga Monteiro Neto, da equipe do Catuiara, a atuação do líder comunitário como autoridade legitimada pela população para solucionar conflitos remonta a 500 anos de história, ao direito indígena, fundamentado nos costumes. "Em qualquer comunidade, vai haver conflitos de interesses e, aqui [em Julião], eles resolvem isso de forma extraprocessual, extra-autos", constata o promotor.
Há situações, no entanto, em que só a intervenção estatal pode resolver o problema, a exemplo da questão de posse de terras. Julião assenta-se sobre área particular. "Somos posseiros", reconheceu Rabelo. "Queria que a gente fosse proprietário. Já falaram pra gente pedir usucapião, mas não temos dinheiro pra pagar advogado. Acho que o governo tinha de desapropriar", sustentou o líder comunitário. Ele vê a falta de escritura como o maior obstáculo para o desenvolvimento do povoado. "Desse jeito, não podemos nem pedir um empréstimo no banco. Aqui, falta trabalho", desabafou.
Almir Rabelo (D): líder comunitário de Julião (cópia em alta resolução)
Palafitas: moradia dos ribeirinhos (cópia em alta resolução)
Vida itinerante
Na linha de frente do Catuiara, o juiz Carlos Zamith e o promotor Mário Ypiranga Neto têm larga experiência em lidar com comunidades do interior amazonense. A toga eles deixam guardada, "senão assusta", disse Zamith. Ypiranga fez coro: "Até o terno que a gente usa às vezes já é uma barreira. Imagine se vestíssemos a toga". Com apenas 31 anos, o promotor passou seis anos trabalhando no interior do Estado, no município de Autazes, a 665 quilômetros de Manaus. "Andava 15 minutos numa "voadeira" (pequeno barco com motor de popa) e depois viajava mais três horas em estrada de terra para chegar ao trabalho", relatou. O problema mais freqüente era com pensão alimentícia, contou o promotor, que já fez muitos acordos para que o pai pagasse a pensão com latas de leite em pó.
Há dez anos, Carlos Zamith, juiz da 3ª Vara Criminal de Manaus, cuida dos dois ônibus da Justiça itinerante do TJ/AM. "O Estado tem 62 municípios e cada município tem sua microrregião, com centenas de comunidades. A maioria delas só pode ser alcançada pelos rios", explicou. "Nas eleições, dependendo das condições de navegação, aciona-se a Aeronáutica para levar urnas eleitorais às diversas populações do Amazonas", lembrou Zamith, consciente de que, para levar a Justiça aos povoados mais distantes de Manaus, passará semanas no Catuiara, sem voltar para casa. "Para chegarmos a Eirunepé, na fronteira com o Acre, vamos demorar cerca de 22 dias", contou o magistrado.
O juiz auxiliar da presidência do TJ/AM, Abraham Campos Filho, também tem histórias do tempo em que era juiz da comarca de Jutaí, há 12 anos. Para chegar ao seu local de trabalho, ele viajava em avião comercial por uma hora, de Manaus a Tefé. Depois, passava 42 horas em um barco, até Jutaí. "Chegava lá com saudade de casa", contou. Campos Filho ficava três semanas no município e uma semana em Manaus, acompanhando recursos e cuidando de questões pessoais.
Desenhado para funcionar como um pequeno hotel, o Catuiara será, ao mesmo tempo, a casa e o ambiente de trabalho da equipe nas viagens mais longas. "Em muitos lugares, não há como a gente se hospedar, porque não há nem hotel nem casa pra alugar", disse Zamith. Daí a importância da concepção do barco.
O Catuiara deixou a comunidade Julião e seu próximo destino é a vizinha São Sebastião. Ele vai atendendo a pedidos dos ribeirinhos do povoado, que aguardam ansiosos para receber a visita da Justiça. "Muitas vezes, é por falta de conhecimentos dos direitos que as pessoas não os exercem. É função do juiz, do promotor, levar o conhecimento dos direitos à população", disse Mário Ypiranga Neto, ciente de sua missão a bordo do "juiz bom".
Juiz Zamith (C) e promotor Ypiranga (E) despachando no Catuiara: (cópia em alta resolução)
Juiz Carlos Zamith conversa com moradores de Julião (cópia em alta resolução)
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