Íntegra do discurso do procurador-geral da República, Claudio Fonteles
Alceu de Amoroso Lima em carta dirigida a sua filha Maria Teresa, que optou pela vida religiosa, e se tornou madre, carta recolhida na belíssima publicação “Cartas do pai”, Alceu assim disse à sua filha do sentimento que lhe trazia o mar:
“Esse gosto de aventura, essa sedução do mar que me acompanha a vida inteira e onde vejo quem sabe a imagem da proporção e da liberdade que me acompanham sempre. Da proporção porque o mar afinal é sempre contido entre as margens, e suas ondas mesmo quando se enfurecem acabam sempre se acalmando e a planície oceânica é um movimento contínuo que dá a ilusão da imobilidade, de uma imensa safira parada e brilhando ao sol do dia ou a amica silentia lunae. E é também a imagem da liberdade, dos horizontes largos da aventura, das terras desconhecidas, das outras flores, dos outros homens, das muitas línguas, desse amor pelo desconhecido que os nossos avós lusitanos nos transmitiram.”
Ambos estamos, Ministro Nelson Jobim, em posição de liderança. Eu já há algum tempo. V.Excia. a partir de hoje.
Ofereço-lhe, então, e a todos os que lideram, para reflexão, essa passagem lida do filósofo-poeta.
Creio, firmemente válido, que atributos da verdadeira liderança radicam mesmo na liberdade e na proporção.
Liberdade para construir, ir adiante, mover-se ao fim que lhe é justo. Jamais ocultar-se, submergir, fazer-se omisso. Conhecemos o mar por suas ondas, não pelo que está submerso.
Proporção por deixar falar, saber ouvir e, então, manifestar-se conclusivamente para o momento, todavia sem petrificar a decisão assumida como se verdade absoluta, tão ao gosto dos ditadores de todas as vestimentas, dos príncipes inflados de vaidade.
Sábia é a advertência do filósofo-poeta no seu livro: “O Existencialismo”
“A uniformidade é a caricatura da unidade. Tendo o mundo moderno perdido a sua unidade substancial, procura por todos os meios restabelecê-la. A unidade, porém, é o equilíbrio entre as diversidades. A uniformidade, ao contrário, é a supressão dessas diversidades. Tendo perdido o sentimento do equilíbrio, da harmonia, confundimos unidade com uniformidade e chegamos quando muito a essa, quando aspiramos atingir àquela”.(pg. 88/89).
Meditando sobre o mau uso do poder, D. José Maria Pires, em homilia acontecida aos 30 de janeiro deste ano, na celebração eucarística em favor da Justiça Eleitoral e contra o nepotismo e o clientelismo – tema profundamente atual -, acontecida em João Pessoa, D. José Maria Pires estabeleceu o confronto entre as posturas do rei David e do rei Herodes. Disse D. José Maria Pires:
“As circunstâncias do adultério do rei David foram agravadas pelo fato de o soldado, Urias, esposo de Betsabea, se achar em combate, a serviço do próprio rei. Outra agravante foi a tentativa de David de ocultar seu crime através de uma chantagem, que não deu o resultado esperado, o que levou o rei a maquinar e fazer executar a morte de Urias. Escândalos tão graves obrigam o profeta Natã, muito a contra gosto, pois era profeta da corte, a interpelar o rei censurando-lhe o crime e impondo-lhe sanções em nome do Senhor. O rei David teve o bom senso de aceitar a censura, humilhou-se, converteu-se e foi perdoado embora tivesse de passar por duras provações como nos contam os capítulos seguintes do mesmo livro de Samuel…Em situação semelhante à do profeta Natã, o precursor João Batista interpelou Herodes que, retornando de uma viagem, trouxe consigo como mulher sua cunhada, a esposa de seu irmão. João Batista deixa o deserto, vai à corte e interpela o rei Herodes dizendo-lhe abertamente: “Não te é permitido viver com a mulher de teu irmão”. Herodes não teve a mesma coragem e dignidade de David. Mandou prender João e, posteriormente, mandou cortar-lhe a cabeça.”
O Ministério Público é a voz da Sociedade Brasileira diante do Poder Judiciário.
Não quer profetizar nada – é instituição humana e portanto expõe-se em acertos e falhas, recordando-se sempre que nenhuma Instituição pode ser julgada por atos isolados de quem a ela pertença, assim como não se pode definir o todo, pela parte – o Ministério Público quer, por suas diuturnas manifestações, instituição permanente como se mostra constitucionalmente, trazer ao espaço adequado, que é o Poder Judiciário, enfatizá-lo como único caminho à solução das controvérsias e disputas, o Ministério Público quer, portanto, perenizar a Democracia, por ser só ela compatível com a dignidade da pessoa humana, porque só a Democracia faz primar a liberdade que, como o mar, nos conduz aos horizontes largos, à descoberta da convivência e à vivência da unidade com o outro.
Assim, Senhor Ministro Nelson Jobim, podemos todos dizer, como fez o apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos, quando demonstrou a transcendência da Justiça sobre a Lei, que importa “esperar contra toda esperança”, eis que a vocação da mulher e do homem, se navegam entre margens, é navegar sempre além.
Tenha V. Excia, e a Vice-presidente Min. Ellen Gracie, presença importante, competente, firme e inolvidável da mulher na partilha das responsabilidades funcionais, o voto do Ministério Público de pleno sucesso na missão que se inaugura.
Paz e Bem!
Brasília, 24 de maio de 2004.
CLAUDIO FONTELES
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA