Íntegra da entrevista coletiva do ministro Gilmar Mendes
Antes de responder às perguntas dos jornalistas na tarde desta terça-feira, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, apresentou um balanço de trabalhos do STF no primeiro semestre de 2008. Leia a íntegra ou escute clicando aqui:
"Estamos encerrando o semestre com resultados bastante auspiciosos, em termos da nova conformação do STF. Nós tivemos uma redução no número de processos, no Supremo Tribunal Federal, da ordem de 10% do total. No ano passado foram, no mesmo período, 58.924 e, agora, 53.011.
A nova fórmula desenvolvida para que se faça a aferição na própria Presidência do Tribunal, a fim de saber se os requisitos do recurso estão presentes, permitiu uma redução significativa no que concerne à distribuição de processos. Se faz uma aferição, antes, para saber se é tempestivo o recurso, se consta a procuração, se a alegação de repercussão geral se faz presente. Todo esse exame se faz, hoje, num grupo de trabalho que atua na Presidência do Tribunal.
Nós tivemos um resultado extremamente significativo. No mesmo período do ano passado, foram distribuídos 64.262 processos e, neste ano, 39.061. Portanto, uma redução de 39%. E só daí é que nós vamos para a distribuição.
O Plenário funcionou extremamente bem, no que concerne às decisões. Proferimos um número significativo de decisões, mas também decisões importantes, como os senhores tiveram oportunidade de acompanhar: a Lei de Imprensa, a Lei da Biossegurança, várias decisões de mérito sobre casos de repercussão geral – muitos deles já resultaram em súmula vinculante –, precisamente seis casos de repercussão geral já reconhecida e com resultado já proferido, e dois ainda pendentes.
Tivemos 73 temas constitucionais já reconhecidos como dotados de repercussão geral, dos quais seis já foram julgados e dois estão em julgamento. Nós esperamos, no próximo semestre, priorizar também os julgamentos dos processos com repercussão geral, porque estes têm reflexos imediatos nos processos que aqui estão e nos processos que estão acumulados nos diversos tribunais.
Gostaria de mencionar, também, que avançamos no que concerne ao acesso à Justiça, com a criação, no âmbito administrativo, da Central do Cidadão, que vem recebendo reclamações, reparos, considerações de toda índole, muitas vezes, inclusive, nós fazemos o reencaminhamento dos pedidos que nos chegam para outros tribunais ou para outros órgãos de ouvidoria.
Outro trabalho que foi realizado neste semestre, que nós pretendemos intensificar no próximo semestre, diz respeito a esta articulação necessária entre o Supremo Tribunal Federal e os demais tribunais. Os senhores sabem, aqueles que estão acompanhando a nossa atividade sabem que o sucesso desse modelo da repercussão geral depende, necessariamente, do bom entendimento com os demais tribunais. Nós precisamos saber que processos – que matérias constitucionais importantes – pendem de julgamento nos diversos tribunais. E, muitas vezes, nós, aqui, ao recebermos determinado processo, determinamos a suspensão desse processo lá. E temos que acelerar o julgamento aqui, evitando esse acúmulo.
Por outro lado, quando nós decidirmos um dado tema aqui – esta é matéria já definida em lei, a partir da própria Lei 10.259, os tribunais poderão fazer um juízo de retratação, evitando, então, que se gerem mais e mais recursos, no caso, recursos extraordinários. Nós estamos fazendo esse trabalho de interlocução, de diálogo intenso. A Dra. Taís e o Dr. Luciano têm visitado os tribunais. Eu também estive, recentemente, conversando com a Presidência do Tribunal de Minas Gerais; ontem, nós estivemos em Manaus e, muito provavelmente esta semana, talvez estejamos em São Paulo. Em suma, estamos muito atentos à intensificação desse diálogo, de modo a permitir que nós aprendamos com essas demandas e angústias dos tribunais e possamos levar as nossas percepções em relação aos recursos extraordinários, o que é possível fazer para racionalizá-los.
Eu gostaria de ressaltar, neste ponto, o que também foi objeto de uma fala minha, hoje, no Plenário: quando nós estamos a fazer esse trabalho de racionalização, nós não queremos simplesmente fazer, aqui, uma economia processual simplista. Nós queremos julgar os processos constitucionais relevantes. Agora, não queremos, na verdade, repetir essa crise numérica, essa crise de repetição, que é um modelo de irracionalidade.
Por isso, nós estamos enfatizando a necessidade da criação e de definição de núcleos temáticos. Aquele interessado que tiver um processo suspenso na origem, cujo tema já foi reconhecido como tema de repercussão geral, poderá atuar no STF, trazer memoriais, eventualmente se inscrever como amicus curiae para o fim de participar da sustentação oral.
Nós queremos fazer um julgamento responsável e bem informado. Mas, para isso, nós não precisamos nos pronunciar em 10 mil processos. Basta um caso, como qualquer corte constitucional digna do nome pode fazer.
Portanto, o tribunal não está fugindo da sua responsabilidade de responder às questões constitucionais relevantes. Apenas está trabalhando com métodos racionais e responsáveis.
Eu gostaria, ainda, e eu sei que esta é uma preocupação dos senhores que sempre aflora em nossos diálogos, de dizer que nós estamos, na Secretaria Judiciária, criando um grupo de acompanhamento das ações penais originárias. Por quê? Porque nós sabemos que uma boa parte da demora que, depois, resulta, às vezes, nessa ciranda de processos, nesse passeio de processos, resulta da instrução delegada que, às vezes, não é atendida. A carta de ordem que vai para uma dada vara da Justiça Federal nunca mais volta, ou que volta dentro de paradigmas da eternidade. Então, é preciso melhorar essa relação e, para isso, nós estamos, então, criando um núcleo voltado para o processamento e instrução dessas ações.
Estamos também, neste mesmo âmbito, pensando num núcleo de atenção adequada aos processos de controle concentrado – as ADIs, as ADCs, as ADPFs e outras –, sempre com objetivo de enfatizar a importância do afazer do Tribunal em matérias constitucionais, que é o seu mister primordial.
De modo que são essas as notícias que eu queria dar no início e, obviamente, eu gostaria de agradecer, enormemente, o trabalho que os senhores têm realizado, a divulgação que os senhores têm feito dos trabalhos do Tribunal, que é fundamental que esse nosso trabalho seja divulgado, que nós possamos levar ao público. E os senhores têm feito isso de maneira bastante evidente, de maneira bastante meritória. E eu gostaria de agradecer este diálogo profícuo que nós temos mantido."
Íntegra da entrevista
Eu queria fazer ao ministro duas perguntas envolvendo investigações da Polícia Federal e também do Ministério Público. Recentemente têm sido comuns alguns casos em que parlamentares ou ministros de Estado ficam com investigações pendentes. E o presidente [da República] tem aguardado que se tenha algum indicativo de sucesso ou fracasso nessas investigações para transformar a pessoa em ministro de Estado. É o caso do ex-ministro Antonio Palocci e do ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau. Dentro dessa nova visão do Supremo de procurar agilizar o julgamento dessas questões, de procurar proferir respostas à sociedade em tempo hábil, essa questão está presente: procurar agilizar o julgamento de inquérito ou de investigações envolvendo grandes personalidades?
A segunda questão é a respeito da atuação da Polícia Federal. O ministro Gilmar, nós sabemos, é um crítico de vazamentos em processos investigados pela PF. E, recentemente, um ex-presidente da Corte me parece que foi vítima de um vazamento, o ministro [aposentado] Calos Velloso. O nome dele foi colocado como se fosse investigado ou tivesse que depor num determinado inquérito. Uma situação que me pareceu até um pouco constrangedora. Eu gostaria de ouvir o ministro a respeito dessa questão dos vazamentos da PF.
Gilmar Mendes – Quanto à primeira pergunta, é claro que nós estamos fazendo um esforço nesse sentido. Os senhores sabem, eu já expliquei aqui, que essas notícias todas que os senhores publicam sobre a chamada prerrogativa de foro muitas vezes têm algumas imprecisões: quanto ao fato de o Tribunal, muitas vezes, não chegar a nenhum resultado quanto à condenação de pessoas. Mas o Tribunal tem emitido juízos muitas vezes conclusivos quanto à absolvição de inúmeras pessoas nos processos. E eu já até brinquei: o Tribunal existe para julgar, e não para condenar. Então é preciso, no Estado de Direito, que nós trabalhemos com paradigmas específicos. Então, isso não é referencial.
No processo envolvendo parlamentar, nós temos algumas sutilezas. Com a jurisprudência desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal, entendendo que o parlamentar perde a prerrogativa de foro, nós temos essa ciranda do processo. O processo às vezes está no Supremo, mas o parlamentar não é eleito ou não é reeleito. Então, o processo vai para a instância ordinária. [O parlamentar] é eleito prefeito, [o processo] vai para o Tribunal de Justiça. [O parlamentar] é eleito governador, [o processo] vai para o STJ. Isso tudo, na verdade, contribuiu para este quadro de indefinição, infelizmente.
Nós talvez tenhamos um encontro marcado com essa discussão ou com essa rediscussão, em função, até agora, de propostas de mudanças, súmulas vinculantes a propósito desse assunto. De qualquer forma, respondo afirmativamente. Estamos focados nesse tema, queremos dar prioridade aos julgamentos das ações penais originárias. E é por isso que estamos realmente dedicados a fazer um exame muito preciso desse dado.
Agora, os senhores nós ajudariam muito se revelassem também que o Tribunal tem julgado e, muitas vezes, tem rejeitado a denúncia, averbando, inclusive, a inépcia de muitas denúncias da Procuradoria Geral da República, julgando, inclusive, ou que a denúncia é inepta ou que o fato [denunciado] é até atípico. E esses casos são o julgamento de mérito.
Quanto a essas investigações da Polícia Federal, eu acredito que nós teríamos que fazer um seminário sobre isso para abordar todo o tema, em todos os seus aspectos. Eu vou apenas pontuar algumas questões.
Do que percebo de alguns episódios, muitos têm notório caráter de retaliação e até de controle ideológico contra os juízes. Não vou me referir especialmente ao caso de Carlos Velloso (ex-ministro do STF), recentemente divulgado, mas houve aqui, não faz muito, o caso do Sepúlveda Pertence (também ex-ministro do STF). Depois houve o meu próprio caso: o nome envolvido no caso de homonímia conhecido, mas que se sabia que era indevido. O caso do [ministro Sepúlveda] Pertence, os senhores sabem, inventou-se que ele proferira uma sentença para atender ao pedido de um dado lobista que falava ao telefone.
Infelizmente, até agora – hoje eu cobrava isto do doutor Antonio Fernando [Souza, o procurador-geral] –, não temos resultado desse inquérito. No meu caso, se sabia que não era eu o personagem citado. No dia seguinte, a Polícia Federal emite uma nota para dizer que reconhecia apenas que era a opinião de ministro do Supremo. Qual era a opinião? Que eu dizia que era canalhice divulgar fatos daquela forma, com aquele grau de irresponsabilidade. Depois, fiquei sabendo – a representação [contra esse fato] também hoje já está na Procuradoria – que, na verdade, a ação fora projetada a partir da própria assessoria de imprensa da Polícia Federal, que pedia aos órgãos de imprensa que divulgasse o fato.
E por quê? Porque, numa quarta-feira, os senhores hão de se lembrar, o doutor Antonio Fernando fez umas declarações dizendo que a ministra Eliana Calmon conhecia mais os autos do que eu. E eu rebati aquilo dizendo: “eu não preciso conhecer os autos, basta que se tenha conhecimento dos fundamentos do despacho, da decisão que decreta a decisão”.
Eu fiz essa declaração às 14h30. Às 18h30 as redações estavam recebendo, em retaliação, a notícia do envolvimento do meu nome nesta matéria, quando o escutado era Gilmar de Melo Mendes – o mesmo que aparece no caso de Pertence – um velho conhecido da polícia. A confusão, portanto, não foi acidental. Até agora esse fato não se esclareceu.
O ministro [Félix] Fischer, do STJ, se recusou a atender a um pedido da polícia de decretar a prisão preventiva de juízes em São Paulo. [Ele] determinou a busca e apreensão. Na semana seguinte, uma revista semanal publicava que o filho de sua excelência estava envolvido em um caso determinado. Caso flagrante de retaliação.
É preciso encerrar esse quadro de intimidação. É fundamental que o presidente da República, que o ministro da Justiça e que o diretor da Polícia Federal ponham cobro a esse tipo de situação. É abusivo o que se vem realizando. Não é possível instaurar, no Brasil, o modelo de Estado policial. Nós repudiamos com toda a veemência, e os senhores conhecem a minha posição sobre isso. É chegada a hora de o Brasil reinstitucionalizar essas relações. Já falei isso, inclusive, com o Presidente da República. É necessário que nós promulguemos uma nova lei de abuso de autoridade – a lei é de 1965, do governo Castelo Branco, está totalmente defasada – para que nós possamos abranger esses novos tipos penais que se verificam a toda hora.
Aproveitando que o senhor falou dessa nova legislação, eu queria saber o que o senhor sugeriria que fosse incluído como esses novos tipos penais, de abuso de autoridade. Quem deveria responder a quem?
Gilmar Mendes – Eu tenho a impressão de que há toda uma sorte de delitos, alguns deles estão até tipificados na legislação, mas ganhariam talvez uma certa celeridade, talvez devessem ser tratados na esfera administrativa e na esfera criminal. Por exemplo, hoje, o vazamento de informações de maneira indiscriminada. Isso precisava realmente ser cobrado e definido. Nós temos hoje uma rede de conhecimentos sobre as matérias e começam a pontuar as informações para que em dadas vezes, às vezes parcialmente verdadeiras em relação a determinado conteúdo, mas falsas no contexto geral, que alguém é amigo de alguém – isso não precisa ter escuta telefônica para se fazer esse tipo de revelação. Mas tudo isso vem-se fazendo com uma sem-cerimônia que realmente amedronta.
No caso específico a que me referi, no meu caso pessoal, os senhores acompanharam a mídia durante todo o final de semana e havia notas dizendo que havia uma lista de pessoas beneficiárias de mimos da Gautama. A intenção era me atingir. Eu não me toquei em relação a isso, porque obviamente nem conhecia esta empresa e depois, quando um amigo na segunda-feira me advertiu que eu era o endereçado daquelas indiretas (um amigo que fora ministro da Justiça), eu achei engraçado. Vim para o meu gabinete para olhar se não recebera nos últimos dois anos uma gravata, uma folhinha ou calendário. Veja que cuidado a gente tem de ter. Que tipo de terrorismo lamentável, que coisa de gângster. Quem faz isso, na verdade, não é agente público, é gângster.
Eu queria saber se o senhor já tem mais ou menos a previsão de quando devem entrar nos próximos semestres temas polêmicos em julgamento como Raposa Serra do Sol e vários outros que estão pendentes de julgamento, como importação de pneus, etc. O senhor acha que, no julgamento, por exemplo, da Argüição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que trata de ficha suja de candidatos, esse assunto será definitivamente resolvido ou voltará às pautas a cada eleição?
Gilmar Mendes – Em relação à Raposa Serra do Sol, essa é a nossa prioridade máxima. Eu estou em contato com o ministro [Carlos Ayres] Britto e vamos saber se conseguimos julgar logo em agosto. Em relação à ADPF, ela também é um tema importante, uma vez que ela tem repercussão sobre o processo eleitoral. Então, nós temos que priorizar o julgamento a fim de termos clareza sobre o tema. Imagino que tenha pedido de liminar (eu não conheço a ação), mas havendo pedido de liminar, certamente vai ser priorizada para o julgamento por conta da repercussão no processo que nós temos, em função do quadro eleitoral.
Eu queria tirar dúvida no âmbito do CNJ. Um ministro do Supremo deu uma liminar praticamente parando uma investigação em São Paulo, e o juiz de primeira instância (6ª vara de SP) ignorou a liminar do ministro Celso de Mello. Pode haver alguma punição para o juiz que ignora uma liminar de instância superior?
Gilmar Mendes – Eu não conheço o caso, desculpe-me. O que se pode pedir é uma reclamação ao Tribunal, inicialmente, e depois, se houver a possibilidade, pode-se encaminhar sempre a questão à consideração do CNJ. Mas prioritariamente o que se tem de fazer é uma reclamação ao Supremo Tribunal Federal para mostrar, de fato, que está havendo um descumprimento de decisão.
Ministro, eu tenho duas perguntas para fazer para o senhor. A primeira é sobre a questão dos possíveis candidatos com ficha suja. Como o senhor pessoalmente avalia isso: o eleitor deve conhecer na íntegra o histórico dos candidatos e, com isso, ter acesso à chamada ficha suja?
E a segunda [pergunta]. Recentemente, o senhor foi vítima de violência e, em dezembro de 2006, também. Como é que o senhor, como presidente do Supremo, avalia esse tipo de situação? E que recomendação o senhor dá para o cidadão comum que hoje vive numa grande cidade e também teme a violência?
Gilmar Mendes – Eu já tive a oportunidade de me manifestar outras vezes sobre esse tema da “ficha suja”, ou assim chamado por vocês [jornalistas] de ficha suja. Aqui, há um quadro de imprecisão como os senhores conhecem. A rigor, é muito fácil engendrar um inquérito criminal ou uma acusação contra alguém.
Nos dias de hoje é extremamente fácil, e eu já tive a oportunidade de dizer isso, inclusive no Congresso Nacional, quando da minha argüição [sabatina], dizendo que o processo dialético que marca a política faz com que muitos integrantes da oposição – e essa é uma história que conhecemos bem – deixem de fazer a oposição parlamentar e sentem praça no âmbito do Ministério Público, fazendo representações contra adversários. E, a partir daí, se engendram processos.
Então, quais serão os critérios que nós vamos adotar? Por isso que o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], inicialmente, recomendou o resgate de uma idéia antiga e que foi considerada pelo próprio TSE inconstitucional à época, isso sobre o regime militar, que era, eventualmente, a de colocar numa lei complementar – que é a lei da inelegibilidade – que aquele que eventualmente respondesse por um processo e que já tivesse sido condenado em segundo grau, que ficasse impedido de disputar a eleição. Esse foi, digamos, o entendimento do TSE.
Eu tenho horror a populismo e muito mais a populismo de índole judicial. Então, eu não me animo a ficar fazendo esse tipo de lista porque eu tenho medo de cometer graves injustiças. E uma injustiça que se cometa já será suficiente para questionar esses procedimentos. De modo que, aqui, os senhores não me terão a favor desse tipo de procedimento.
Acho que a questão está com o Congresso Nacional, a matéria foi colocada no TSE, o TSE rejeitou por maioria. Portanto, eu não vejo com entusiasmo essa iniciativa por parte de órgãos judiciais. Claro, a comunidade que se organize, os partidos políticos que façam a sua seleção, a imprensa que publique e assuma as suas responsabilidades. Mas nós estamos num terreno extremamente sensível e se podem cometer graves injustiças.
Quanto à segunda pergunta, os senhores sabem, eu já tive a oportunidade de dizer, a questão da segurança pública hoje se tornou talvez a prioridade número um para tantas pessoas. Tanto é que eu já tive a oportunidade de dizer recentemente, quando se colocou o debate sobre emprego ou não das Forças Armadas [na segurança pública] – eu disse, “nós não podemos ideologizar esse debate”.
Nós não podemos levar esse debate para o campo ideológico. Nós devemos cuidar para que haja uma coordenação necessária entre governo federal e governo estadual no sentido de ter uma ação concertada, uma ação conjunta.
O tema se tornou tão grande que hoje não é tema federal, não é tema estadual, não é tema municipal. É um tema nacional e exige uma ação concertada, políticas públicas, inclusive, que envolvam políticas de índole social com o objetivo de reduzir drasticamente a criminalidade.
A população como um todo está sendo atingida por este tipo de situação, por este tipo de insegurança. Na medida em que criminosos comuns de sentem tão livres, é a nossa liberdade que está em jogo, é a liberdade do cidadão comum.
No caso específico, os senhores viram, nós [ministros] detemos até uma situação relativamente privilegiada. Eventualmente podemos andar com seguranças, mas o cidadão comum não. E o que ele faz?
Nesses pequenos crimes de índole patrimonial, há um reflexo que talvez as próprias estatísticas não revelem, pela inexistência de registro. Quem é que se dá ao trabalho de fazer o registro de uma eventual perda verificada numa praia? Na verdade, nós não temos dados sobre isso. Isso cai no universo das estatísticas recônditas.
É preciso, portanto, realmente dar atenção a isso, desideologizar o debate e tornar isso uma prioridade nacional. Nós tivemos, até muito pouco tempo, o hábito de tornar o tema segurança pública tema estadual e, com isso, o governo federal nada tinha a ver com a questão. De longe o tema deixou de ser estadual. É um tema, realmente, que precisa ser tratado com a devida seriedade em todos os planos.
Eu queria perguntar ao senhor como vai, na prática, funcionar esse núcleo de acompanhamento das ações penais originárias no Supremo? Quais serão os efeitos na sua avaliação desse núcleo na celeridade dos processos. Uma segunda pergunta também ligada a isso: o ministro Joaquim Barbosa disse na semana passada que ele espera que o processo, a ação penal do mensalão, se prorrogue em função da apresentação de novas testemunhas, enfim, de recursos das defesas dos acusados, até 2014. Eu queria saber se o senhor tem essa mesma expectativa e se de alguma forma a criação desse núcleo também poderia influir para reduzir o espaço de tempo necessário para a conclusão desse processo.
Gilmar Mendes – O que nós percebemos aqui é que nós delegamos a parte administrativa da instrução, às vezes toda a instrução, para as instâncias ordinárias. E, muitas vezes, isso é secundarizado tanto no âmbito do Tribunal quanto no âmbito da Justiça que recebe essa delegação. Então o que nós pensamos? Criando este núcleo, haverá esse acompanhamento para que nós evitemos essa demora e acredito que o próprio caso do mensalão é um bom exemplo. Houve um acompanhamento rigoroso e o interrogatório se realizou a tempo e hora como era desejado, de modo que eu tenho, até como exemplo, esse caso do mensalão para justificar, agora, a criação desse novo setor, desse núcleo especializado. Eu não conheço os dados em que se louvou o ministro Joaquim para emitir esse juízo quanto a esse prognóstico. Todos nós sabemos que o processo criminal continua sendo um processo extremamente complexo com essas múltiplas testemunhas. Está se fazendo um esforço enorme no Congresso Nacional. Parte dessa reforma já foi feita no sentido de manter a idéia de segurança jurídica, do direito de defesa, mas, ao mesmo tempo, de permitir aceleração no processamento das ações. Mas eu não tenho dados para falar sobre essa perspectiva enunciada pelo ministro Joaquim Barbosa.
Matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo diz que o Ministério Público quer voltar à discussão da Lei da Anistia. O senhor acha que é o caso, depois de tantos anos, esse assunto voltar ao Supremo?
Gilmar Mendes – Sempre se pode voltar. A questão básica que precisa ser analisada, do que eu tenho visto na mídia, é que se faz uma distinção entre eventuais crimes perpetrados por agentes de estado e militantes políticos e se diz que a Lei da Anistia teria sido unilateral. Não parece ter sido esse o sentido da Lei da Anistia, no seu início, tal como preconizavam aqueles que a defendiam. Eu acho muito difícil, para um órgão judicial imparcial, como é o Supremo Tribunal Federal, distinguir assassinatos, por exemplo, ou distinguir barbaridades feitas por um ou por outro agente, seja ele privado ou público. Acho muito difícil fazer-se essa ponderação e dizer que o assalto a banco feito por um militante vinculado a um partido maoísta, ou a um partido soviético, ou a um partido cubano teria uma causa nobre, e que a eventual defesa feita por alguém, ou uma barbaridade feita em um quartel, esta deveria ser repudiada. Acho muito difícil se fazer essa ponderação de maneira diferenciada e acho extremamente arriscado que se discuta isso imaginando que se vá ter resultados plausíveis.
O senhor disse que falou com o presidente Lula a respeito dessa nova Lei de Abuso de Poder. Como foi a recepção do presidente Lula a respeito do tema? Como seria a iniciativa? Seria do Poder Judiciário, do Executivo? Já tem algo definido a respeito disso?
Gilmar Mendes – Nós estamos conversando sobre a necessidade de um novo pacto, pelo Poder Judiciário, republicano, independente, célere como já ocorrido na gestão do ministro Jobim. Mas eu pensava que talvez nós devêssemos avançar um pouco mais em não falar apenas no Judiciário republicano, mas no Brasil republicano, nesse pacto, e trazer algumas questões importantes, que dizem respeito ao Judiciário e a sua institucionalidade, mas também à organização do Estado como um todo. E aí eu imaginei que uma dessas leis é a Lei de Abuso de Autoridade, uma nova concepção da Lei de Abuso de Autoridade. E acho que nós deveríamos discutir isso de forma bastante aberta que já são notórios os abusos perpetrados sem nenhuma solução. Muitas vezes esses fatos são revelados, depois ficam na memória apenas daqueles que são eventualmente prejudicados ou atingidos. Hoje mesmo, vou repetir, falei com o doutor Antonio Fernando que o Supremo Tribunal Federal vai exigir que essas representações que foram encaminhadas tenham curso, porque em geral não recebemos nem notícia de qual é o seu estado, mesmo a procuradoria delas não cuida, porque de certa forma se sente um pouco co-autora, cúmplice, conivente com a prática que se realizou. Então, ela não dá curso, simplesmente encaminha, abre o inquérito e nunca mais noticia, isso que nós vamos passar a exigir.
Mas eu acho que esse é um campo que nós precisávamos, realmente, avançar. E numa conversa com o presidente Lula eu disse que é preciso que nós discutíssemos, e ele entendeu bem isso. Eu acho que há outras questões que nós podemos discutir e que não dizem respeito, necessariamente, ao Poder Judiciário. Nós estamos precisando, na verdade, de uma nova lei orçamentária. Os senhores sabem que uma boa parte desses escândalos hoje estão sediados nesse modelo de emenda parlamentar e que tem servido a toda essa situação de abuso. Talvez nós devêssemos repensar esse modelo. E repensar urgentemente. Eu que sei que isso é complexo. Eu sei isso muitas vezes envolve uma própria reconcepção da política, mas é fácil ver que esse sistema já deu péssimos resultados e tem capacidade de produzir, ainda, resultados piores. Nós já tivemos, os senhores conhecem, a crise da comissão de orçamento, que precedeu ao impeachment, e temos tido sucessivas crises, e esses abusos que se vêm revelando, na verdade, nada mais são do que a distorção de um modelo de prática orçamentária. O tribunal tentou dar uma resposta a isso tentando fazer com que o país resgate a condição de ter novamente orçamento quando proferiu aquela decisão sobre crédito extraordinário em matéria orçamentária porque o país deixou de ter um orçamento verdadeiro, mas é preciso repensar, e o artigo 165, parágrafo 9º, da Constituição reclama uma nova lei complementar que pudesse realmente basilar as distorções. Que emendas parlamentares não fossem feitas com esse desiderato que vem sendo feito hoje. Talvez houvesse um planejamento, talvez houvesse articulação regional que evitasse esse espetáculo que todos nós estamos a assistir.
O senhor é relator do processo do Palocci. Existe algum prazo para trazê-lo a Plenário?
Gilmar Mendes – Com a maior prioridade, como já tive oportunidade de acentuar na resposta que dei anteriormente.
Recentemente o Supremo teve o caso de um deputado que renunciou às vésperas de ser julgado pela Corte para que o processo recomeçasse na Justiça de primeira instância. Eu gostaria de saber qual a opinião do senhor, dá para fazer alguma coisa para evitar isso, principalmente agora que um julgamento como o mensalão tramita no Supremo. Não seria o caso de rever as leis, para evitar que esses 40 investigados também tivessem o processo recomeçado depois de anos de investigação e apuração?
Gilmar Mendes – É uma coisa engraçada essa matéria da prerrogativa de foro, que os senhores chamam de foro privilegiado. Em geral para problemas complexos a gente consegue sempre enunciar uma solução simples, em geral também errada. Essa idéia da supressão da prerrogativa de foro parece ser uma delas. Se esse processo do mensalão estivesse em primeiro grau – eu já tive oportunidade de ressaltar isso – muito provavelmente talvez os prognósticos do ministro Joaquim devessem ser multiplicados para 2028, seja lá o que for, se é que já não estariam todos prescritos, porque daria ensejo a decisões díspares, certamente desconexas, com múltiplos habeas corpus, como tem ocorrido, os senhores acompanham as decisões das turmas. Mas neste caso houve a possibilidade de se fazer um julgamento concentrado e por isso, então, uma decisão de recebimento da denúncia em tempo tão célere e já de forma definitiva, praticamente, sem possibilidade de recurso. Se isso se desse no âmbito de habeas corpus, com 40 réus, se houvesse uma decisão favorável outro poderia pedir extensão e, não obtida a extensão, poderia entrar com habeas corpus originário, em suma, todo um emaranhado grave, que poderia comprometer todo o processo. Mas nessa discussão sobre foro privilegiado, o Supremo reviu aquela súmula que dizia que, iniciado o processo sob a sua jurisdição, ele continuava sob a sua jurisdição, desde que o crime houvesse sido cometido naquela condição. O Supremo entendeu que perdida a prerrogativa de foro o processo passaria às instâncias ordinárias e foi o que ocorreu nesse episódio. E agora, há até uma proposta de emenda constitucional que visa nos colocar em uma situação ainda mais estranha, mais peculiar, que nós receberíamos a denúncia contra esses que gozam da prerrogativa de foro e passaríamos o processo para as instâncias ordinárias para processar e julgar esses eventuais infratores. E aprovada essa emenda obviamente esse processo, inclusive do mensalão, passaria para essas instâncias, o que é extremamente grave. Eu tenho posição muito clara sobre isso, já disse quando discutimos o processo Cunha Lima, eu entendo que nós devemos resgatar a dicção da súmula, para processos da nossa competência, iniciado o processo aqui, deveríamos prosseguir no julgamento. Essa é a minha posição, acho que esse é o entendimento correto. No caso Cunha Lima, esse teria sido o entendimento correto – se ele tivesse renunciado, como ele cometera o crime como governador do estado, o processo iria para o STJ, porque lá começou originariamente. Não haveria, portanto, esse passeio dos processos e essa possibilidade de eventual distorção ou manipulação. Acredito que nós temos encontro marcado com esse tema.
O senhor chegou a declarar, há um tempo, que considerava que a demarcação de forma contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol gerava muitos conflitos e defendeu até a demarcação em ilhas de preservação. O senhor esteve na reserva acompanhado por outros dois ministros. O senhor mantém essa posição sobre a demarcação da reserva?
Gilmar Mendes – Na verdade quando eu falei sobre esse tema, falei em tese. Não tenho juízo concreto. Só disse que causa espécie muitas vezes grandes extensões principalmente no caso específico em que havia núcleos habitacionais e até municípios dentro dessa área. Vamos aguardar o julgamento, vamos analisar o tema, tendo em vista a prova da posse indígena e todos os problemas surgidos – e aí teremos uma posição muito clara sobre a situação.
A nova legislação sobre a tolerância zero de álcool para quem dirige pode desaguar em ação no STF? Não haveria uma certa desproporcionalidade na lei, ao punir a todos os infratores de forma igualmente severa?
Gilmar Mendes – Pode ser que haja uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre o tema. Eu já tive oportunidade de me pronunciar sobre a necessidade de uma legislação mais rigorosa sobre essa questão, do álcool e bebida. Todos nós que temos alguma oportunidade de viajar para fora sabemos dos cuidados que todos tomam ao ingerir um copo de cerveja, porque sabem que, na direção de um veículo, estão submetidos aos rigores da lei, em caso de eventual infração criminal. Acredito que nós temos que levar isso a sério. Os números são assustadores. Eu sei que há um debate sobre essa desproporcionalidade da lei, o fato de não se ter contemplado um índice mínimo. Será, se chegar ao Supremo Tribunal Federal, devidamente apreciada. Mas eu disse que beber e dirigir são elementos incompatíveis, e me parecer que se deve seguir nessa direção correta.