Entrevista ao Programa Econômico (SP) – ministro Marco Aurélio
Boa-Noite! Bem-vindo ao Programa Econômico. Estamos no ar e, hoje, com uma entrevista especial com um dos grandes formadores de opinião do País, uma das personalidades que não tem medo de enfrentar o pensamento hegemônico, as maiorias, que é o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello.
LUIS NASSIF – Boa noite, Ministro !
Boa noite, Nassif!
Obrigado pela sua presença em Programa Econômico.
Sr. Ministro, dias atrás, o Sr. deu uma entrevista ao Correio Braziliense criticando essa mania por reformas, resolver tudo através de lei, de mudança de Constituição. Queria que o Senhor detalhasse um pouquinho mais essa crítica.
Já temos, no País, leis suficientes para se chegar a uma vida segura, não é? E se fala nesta quadra em reformas, mas esquecemos que essas reformas não podem retroagir para pegar situações constituídas, direito adquirido e situações em curso que a própria Constituição protege. E, então, ficamos perplexos. E ficamos até mesmo com receio de se formar um rolo compressor e não haver uma reflexão maior, o amadurecimento do tema para depois, então, ele ser submetido aos deputados federais e aos senadores.
Senhor Ministro, especificamente na questão da aposentadoria, quer dizer, houve essa discussão sobre o que seria direito adquirido; se seria prorrateado, para usar uma expressão jurídica e financeira também. Qual o conceito de direito adquirido que o Senhor defende?
É aquele que já está integrado ao patrimônio do cidadão. O Supremo tem, inclusive, um verbete revelando uma jurisprudência reiterada, julgamentos verificados, estampando que os proventos são regidos pela legislação da época em que o servidor implementou as condições para a aposentadoria; ele pode permanecer no serviço público, mas ele já tem uma situação constituída. Pois bem. Aí temos um direito adquirido. Agora, há de se considerar, também, a proteção da relação jurídica. Não cabe a uma das partes, em meio ao trânsito dessa relação jurídica, alterar as regras do jogo.
Quer dizer, e essa idéia de que se tem 15 anos de serviço público? 15 anos seriam em cima dos direitos antigos e 15 ou 20 em cima da nova lei? Na sua opinião, isso fere a Constituição.
O que houve com a Emenda nº 20? Todo mundo esquece essa emenda. Previu-se a adoção do teto da previdência geral em relação aos servidores públicos. Mas, aí, tivemos a imposição de duas condições: primeira, a criação da previdência complementar – isso em 1998, são passados 4 anos e até aqui não se fez nada. E, ao lado da previdência complementar, a manifestação de vontade prévia e expressa do servidor. Então, a Carta, hoje, reconhece a intangibilidade das relações jurídicas estabelecidas, pouco importando que ainda não se tenha um implemento do tempo para chegar-se à jubilação, para chegar-se à aposentadoria.
Sr. Ministro, nessa discussão ficou um pouco confuso aí a maneira como os colegas de Brasília cobriram essa discussão. Às vezes, ficava parecendo que parte dos Ministros do Supremo reconhece aquele negócio do direito parcial, que a maioria reconheceria isso. Às vezes, ficava parecendo que o Senhor estava reconhecendo isso. Vamos esclarecer, porque a cobertura foi muito confusa.
Veja, quanto a esse dispositivo, não há precedente algum do Supremo. Agora, admito que o Supremo apenas reconhece o direito adquirido em relação àqueles que já se aposentaram ou, então, em relação àqueles que já implementaram as condições para aposentadoria e que permanecem no serviço público. O Supremo até aqui vinha proclamando sem se defrontar com esse dispositivo decorrente da Emenda nº 20, que condicionou a inserção do novo sistema à manifestação prévia e expressa do servidor; ele vinha proclamando: “não há direito adquirido a regime jurídico”, e eu votando sempre vencido. Por quê? Porque temos no regime jurídico condições que são previstas, condições que levaram o servidor a fazer o concurso público e a optar por uma vida limitada, mas segura, e a segurança pressupõe o respeito irrestrito às regras do jogo.
Sr. Ministro, e se for pegar do ponto de vista do bom-senso? Porque acho que a Justiça, no fundo, ela reflete O bom-senso.
Sem dúvida. É bom-senso.
Se um funcionário público fica 20 anos como funcionário público, então, deve-se falar: não, mas vai ter esse direito em cima dos 20 anos. Se ele quiser pegar os 20 anos ou 15 anos, ou 10 anos restantes como iniciativa privada, ele já terá comido 20 anos de investimento numa carreira da iniciativa privada. Isso é um ponto que…
Pois é. Veja a mesclagem dos sistemas. Mas houve uma opção política, legislativa dos congressistas, no que só estipularam para se ter essa mesclagem – a contribuição no setor privado, limitada; no setor público, sobre a totalidade do vencimento. Ele só exigiu a existência de dez anos de serviço público e cinco no cargo, quando poderia ter silenciado a respeito e, aí, caberia, até mesmo, a mesclagem dos sistemas, calculando-se os proventos segundo as contribuições: vinte anos, por exemplo, nos termos das contribuições no setor privado e quinze anos no serviço público. Isso não é mais possível, porque os servidores viram integradas, em seus patrimônios, as novas regras, que só exigem dez anos de serviço público, o restante, portanto, na iniciativa privada, com contribuições limitadas e cinco anos no cargo. Agora, um detalhe que ninguém pára para perceber: o regime de previdência oficial, na União, só passou a ser contributivo com um dispêndio, portanto, da parte dos servidores, em 1993.
Sr. Ministro, gostaria de abordar uma questão intrigante: quando analisamos a questão da morosidade do Judiciário, há uma parte processual muito grande que diz respeito a questões operacionais, gerenciais, falta de informatização, falta de organização e método. Andei participando de alguns congressos de qualidade no Judiciário e vimos avanços grandes, mas muito restritos. O que impede o Judiciário de se modernizar do ponto de vista de gestão?
Recursos. Temos uma limitação orçamentária e não podemos, sequer, caminhar para a criação de novos órgãos e para uma infra-estrutura que realmente viabilize uma celeridade processual maior. Agora, estamos ainda no rescaldo dos incêndios provocados pelos diversos planos econômicos. A primeira distribuição no Supremo Tribunal Federal, depois das férias, que passaram a ser um castigo, foi da ordem de nove mil processos; novecentos processos para cada integrante do Supremo. Alguma coisa está errada. E há um detalhe: se for feito um levantamento no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, você verá que o grande cliente do Judiciário é o Estado. O Estado, nos últimos anos, claudicou em demasia. É importante, portanto, que não sejam criados novos esqueletos e, nessas reformas que se avizinham, seja observado o estabelecido e não se pretenda – repito, porque não se coaduna com o Estado Democrático de Direito – uma correção, consertar o Brasil, com “c” e com “s”, retroativamente. A insegurança que se teria desse desiderato seria terrível para a vida em sociedade, para a vida agregária.
Hoje, com a questão do avanço digital, tecnicamente seria possível haver um processo pela “internet”, ou pelo menos pela “intranet” dos tribunais, permitindo o acompanhamento processual. Se tivesse recursos, hoje, o Judiciário estaria apto a isso?
Estaria. Mas se defrontaria, de qualquer forma, com uma carga enorme de processos. Precisamos conciliar um pouco mais o número de órgãos.
Ou seja, da agilidade na primeira instância.
Não adianta.
Explode na última?
Explode. E veja a quantidade de processos, conflitos de interesse que surgem envolvendo principalmente o Estado; eles são em uma monta inimaginável. Precisamos de uma mudança cultural. Primeiro para se buscar meios de composição amigáveis; em segundo lugar, para que os dirigentes observem o Direito posto e, portanto, não venham a espezinhar direito do cidadão e, em terceiro lugar, devemos abandonar a mania de acreditar que podemos corrigir o Brasil, afastar as mazelas brasileiras mediante novos diplomas, gerando uma instabilidade normativa enorme. Se, com leis permanentes, já temos conflitos, porque a lei exige interpretação, o que se dirá quando, a cada dia, se vêem,, no diário, estampadas novas leis, novas medidas provisórias?
Sr. Ministro, em relação a avanços que podem ser feitos sem “essa mania por reformas” à qual o Senhor se refere, quero fazer duas perguntas: o que pode ser desburocratizado no processo judicial como um todo? Já que há um acúmulo tão grande de trabalho no Supremo, STJ, por que não se amplia o número de Ministros?
Veja, Nassif, o que temos em si? As normas processuais direcionam a uma forma exacerbada no processo. Precisamos desburocratizá-lo para se chegar à solução do conflito em um espaço de tempo razoável. Isso já ocorreu, em parte, com os Juizados Especiais, e, aí, tivemos o enxugamento dos recursos. No Brasil, parece que se presume sempre o erro na decisão que é contrária aos respectivos interesses. É muito normal se encontrar um processo com três, quatro, cinco, seis, oito recursos – uma demasia. Se, de um lado, precisamos viabilizar algo que afaste, do cenário, erros, de outro, devemos buscar o objetivo maior da atuação do Estado-Juiz, que é reestabelecer a paz social e isso deve ocorrer num espaço de tempo satisfatório, socialmente aceitável. Agora, quanto ao aumento de juízes, o caminho não é esse. O caminho é ver-se, Brasília, os Tribunais Superiores situados em sede extraordinária excepcional e só determinadas matérias devem chegar aos Tribunais Superiores.
Agora, isso depende de uma reforma para redefinir as matérias que podem chegar…
Sem dúvida. Aí precisamos, principalmente, da reforma da legislação ordinária; não depende, sequer, de alterar a Constituição profundamente como se quer. Aliás, o Ministro da Justiça conclui da forma como eu vinha, inclusive, proclamando: essa reforma, aí colocada, é um verdadeiro engodo, dá uma esperança vã à sociedade de um processo mais célere que não vai frutificar.
Sr. Ministro, muito obrigado por sua presença.
É uma satisfação estar aqui com você e na TV Cultura.
Bom, ficamos por aqui com o Programa Econômico e, amanhã, ele voltará ao vivo. Uma boa noite e bom fim de feriado para os senhores!