Entrevista à Rádio Jovem Pan (SP)- ministro Marco Aurélio

17/12/2002 17:15 - Atualizado há 1 ano atrás

 


RADIALISTA – Agora são 15h47.  Um fato relevante na programação Jovem Pan. Abrimos espaço para Anchieta Filho.


 


Boa tarde, Anchieta.


 


Boa tarde, Fernando Zamith.


 


Estamos recebendo aqui nos estúdios da Jovem Pan o Sr. Ministro Marco Aurélio Mello, que é Presidente do Supremo Tribunal Federal. Pela primeira vez, fazendo uma visita a uma emissora de rádio, e dando a honra à Jovem Pan de nos visitar.


 


Boa tarde, Sr. Ministro Marco Aurélio.


                       


Boa tarde. A visita é realmente a primeira, mas não é a primeira vez que falo à Jovem Pan.


                       


 ANCHIETA FILHO – Com certeza. Boa tarde. Tudo bem com o Senhor?


O Senhor foi homenageado, hoje, pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, não é isso?


                       


 Algo que me honra muito, porque nós juízes somos julgados, em si, pelos advogados.


                       


Certo. Agora, vamos falar um pouquinho da atividade do Supremo Tribunal Federal, Ministro; alguma coisa, evidentemente, que está sendo julgada. O Senhor não pode dar um parecer, uma opinião, porque o Senhor, ainda, não deu o seu voto. Mas uma coisa que está chamando a atenção, em pauta, no Supremo Tribunal Federal, é a questão do fórum privilegiado sobre improbidade administrativa.


 


Hoje, aqui, na Jovem Pan, ouvimos o Procurador-Geral do Estado, Luis Antônio M. preocupado com essa possibilidade de ser aprovado o fórum privilegiado de improbidade administrativa. O Dr. M. disse que o Ministério Público irá perder anos de trabalho na coleta de prova; segundo ele são mais de cinco mil investigações, atingindo mais de 70 políticos aqui em São Paulo. Mais de quinhentas ações foram ajuizadas pelo Ministério Público, o que representa vinte e cinco bilhões de reais de prejuízo aos cofres públicos.


 


Cinco juízes, cinco ministros do STF já deram apoio a esse fórum privilegiado, ou seja, só o Supremo julgará improbidade administrativa.


 


Quando o julgamento estava nas mãos do Sr. Ministro Carlos Velloso, ele pediu vista do processo, isso foi adiado. Eu queria que o Senhor falasse disso. Isso não pode significar uma impunidade, na sua opinião, Sr. Ministro Marco Aurélio?


           


Avançamos muito em termos culturais. E avançamos buscando a responsabilidade do administrador público, que é acima de tudo um servidor e que deve, portanto, contas ao contribuinte. Deve ter atenção voltada para a preservação da coisa pública e, aí, se discute essa matéria. Realmente procede a preocupação do Ministério Público, mas precisamos aguardar o desfecho, em si, desse julgamento.


 


Quando o Sr. Ministro Carlos Velloso pediu vista do processo, após cinco votos proferidos no mesmo sentido, ele sinalizou que realmente tem dúvidas quanto ao enfoque até aqui prevalecente.


           


Sr. Ministro, e a prescrição? Porque, se for aprovado, mais um voto, o fórum privilegiado não será aprovado. Não corre o risco de prescrever, e a própria ação ser considerada nula?


           


Há uma tese que não foi, inclusive, abordada, mas que consta do voto do Relator e que foi subscrita por aqueles que o acompanharam. Se há coincidência quanto ao fato, a ponto de ser enquadrado como ato de improbidade e, também, como crime de responsabilidade, não se tem campo para aplicação da lei nova, que é a lei de improbidade. Temos que buscar a lei que define os crimes de responsabilidade, que é uma lei de 1950 e, talvez, quem sabe, não esteja atualizada, não seja a lei mais adequada para os dias atuais.


 


Creio que cabe esperar o voto de Sua Excelência, que se debruçará sobre o processo, estudará e proferirá – estou certo -, um voto com apego ao ordenamento jurídico, ao que está estabelecido e a partir da própria consciência.


 


Ou seja, esse adiamento tem o benefício de discutir mais o tema?


 


Tem o benefício de proporcionar a reflexão da matéria, inclusive por aqueles que ainda não votaram. E, considerado o voto de S.Exa. e os que se seguirem, também, uma reflexão pelos que já votaram, porque a evolução é inerente à atividade judicante. Cumpre ao juiz evoluir, tão logo convencido de assistir maior razão à tese inicialmente repudiada.


 


Agora, você colocou a problemática da prescrição. Realmente, temos em jogo dois valores: o valor-justiça, e, aí, não haveria prescrição; e o valor-segurança jurídica, que, com a passagem do tempo, deságua na ótica, segundo a qual, saneia as situações existentes.


 


O que temos nesse campo da ação de improbidade? A prevalecer a tese até aqui delineada, considerado o voto do Relator e dos quatro integrantes do Supremo que o acompanharam, teremos a nulidade dos processos em curso, a não ser, no tocante àqueles que já tiveram a sentença proferida, a decisão formalizada coberta pela preclusão maior, o trânsito em julgado, não cabendo mais recurso. E, voltando-se ao statu quo ante, ao início, à data dos fatos, teremos já como transcorridos os cinco anos, dentro dos quais é possível propor a ação de improbidade.


 


Na próxima semana, há a possibilidade desse assunto ser discutido?


 


Não creio. Em primeiro lugar, porque, nesse caso de repercussão maior, há a praxe de se aguardar a presença de todos os integrantes do Supremo Tribunal Federal. Estarei em viagem oficial, de representação do Supremo no exterior. Em segundo lugar, o processo só é remetido ao gabinete daquele integrante do Supremo que pediu vista com as notas taquigráficas e, aí, temos que aguardar a sua confecção. Logicamente, haverá, pelo menos, o decurso de quinze dias.


 


São 15h54min. O Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio Mello, está sendo entrevistado no “São Paulo – Agora” da Jovem Pan. Fernando Zamith.


 


FERNANDO ZAMITH – Sr. Ministro, agora há pouco, o Senhor fez esse conceito: o administrado é um servidor público, e aqueles que estão nos ouvindo devem ter em mente isso. Ele foi eleito pelo voto direto, representa o Poder Executivo, mas, é, sobretudo, um servidor público e deve responder por isso.


 


Sem dúvida alguma, inclusive os juízes.  A sociedade brasileira não quer semideuses; ela quer homens investidos desse ofício, o qual é sublime, de julgar os semelhantes, os concidadãos e os conflitos que os envolvam e que ajam a partir da formação humanística, da formação profissional que possuam e de acordo com a própria consciência. Assim vejo o administrador público, assim vejo o agente público, o agente político e também o magistrado, e, principalmente, o magistrado.


 


Há uma impressão em relação ao cidadão comum, aquele que está andando, que, geralmente, no Poder Judiciário, há uma situação diferenciada. O Sr. acredita, então, que essa posição deve ser sólida? Ele também é um servidor e deve responder por seus atos?


 


É a concepção que deve prevalecer. Não compreendo, por exemplo, já que estamos falando sobre a matéria, quando ouço que é mais fácil haver uma entrevista, uma audiência com integrantes da Suprema Corte, do que com o juiz da comarca, com o juiz da corte de cassação. O juiz, evidentemente, deve ouvir as partes, os representantes das partes que são os advogados, e, logicamente, decidir com eqüidistância e com conhecimento dos fatos, considerados os elementos probatórios do processo.


 


Sr. Ministro, o que está sendo examinado, na verdade, é uma tese elaborada pelo Governo, pela qual atos de improbidade praticados por agentes públicos são equivalentes a crimes de responsabilidade e por isso não podem ser apreciados por juízes de primeira instância. Tudo bem. E uma tese, temos de levar em consideração, debater.


 


Mas eu queria abordar com o Senhor o papel do Supremo Tribunal Federal. São ministros, cargos vitalícios. Há uma proposta de um jurista conhecido, Professor José Afonso da Silva, que foi Secretário da Segurança aqui em São Paulo. Ele entende que o Supremo Tribunal Federal deve ser uma Corte Constitucional, com mandato fixo dos Ministros, com representantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e do governo. Hoje, os ministros do Supremo são indicados pelo governo e aprovados pelo Congresso Nacional. O que o Sr. acha dessa tese?


 


Creio que, mais dia menos dia, teremos no Brasil a criação de uma Corte Constitucional.


 


ANCHIETA FILHO – Como seria essa Corte?


 


É a modernidade. Seria uma Corte incumbida apenas de declarar o que é a Lei Maior do País: a Constituição Federal. Não atuaria como órgão originário no julgamento de ações penais, por exemplo, de ações originárias. Considerado o que temos em outros países, teríamos de modificar a forma de arregimentação dos integrantes dessa Corte. Como penso que devemos refletir, considerado o futuro, não as vagas que se avizinham – sou contra o casuísmo, ou seja, decidir-se de forma direcionada. Poderíamos pensar até numa outra forma de se escolher e nomear os integrantes do próprio Supremo Tribunal Federal. Quero deixar assentado que os integrantes do Supremo ocuPan cargos vitalícios, e essa prerrogativa da vitaliciedade visa, acima de tudo, preservar, em benefício da sociedade, a independência do julgador. Imagino todos os integrantes do Supremo Tribunal Federal julgando apegados apenas à própria consciência.


 


O Senhor, então, concorda que essa mudança da Corte constitucional seria uma modernidade; o Senhor, na verdade, defende isso.


 


Defendo. Sou favorável à criação da Corte Constitucional no Brasil.


 


FERNANDO ZAMITH – Sr. Ministro, essa defesa que o Sr. faz de uma Corte Constitucional – de que forma poderia acontecer na prática?


 


Poderia mediante alteração da Carta da República. Teríamos o Superior Tribunal de Justiça alçado à Suprema Corte de Justiça, e a Corte Constitucional atuando apenas no âmbito da Constituição e declarando o que é a Constituição brasileira, ou seja, atuando de uma forma que terá uma repercussão maior.


 


Ou seja, a Corte julga exclusivamente casos de inconstitucionalidade?


 


Apenas surge um problema, com isso: a concentração de poder. Hoje, temos dois sistemas de controle de constitucionalidade de normas abstratas: o controle difuso, que é exercido por qualquer órgão investido do ofício judicante, e o concentrado. A partir do momento em que venhamos a ter, no Brasil, um Corte Constitucional, haverá a concentração – há esse aspecto negativo que precisa também ser considerado.


 


 


Sr. Ministro, a reforma do judiciário, aliás, continua em discussão no Senado Federal, e é muito difícil haver um consenso sobre o tema. Está havendo uma reunião no Nordeste de juízes federais preocupados com a perda de poder da Justiça Federal. Acham que, do jeito que está, vão perder poder. Qual a reforma judiciária o Sr. considera ideal, que está em discussão no Senado, sendo o Senador Bernardo Cabral o Relator?


 


Sou contra a visualizar-se a Constituição como algo que possa ser modificado ao sabor das circunstâncias reinantes. Sou favorável a um documento perene, a um documento estável e penso que o interesse do cidadão, o interesse da sociedade em geral passa muito mais pela reforma dos códigos processuais para se desburocratizar o processo do que pela alteração da Carta da República. Não se dê uma esperança vã ao povo brasileiro quanto à rapidez na solução dos processos com a reforma do Judiciário a partir da alteração da Constituição Federal. Isso não ocorrerá.


                       


ANCHIETA FILHO – Por exemplo: reforma do Código Processual Penal.


                       


Sim, vamos desburocratizar sem prejudicar, também, o lídimo direito de defesa, mas vamos afastar formas que não se coadunam mais com a época em que vivemos.


                       


FERNANDO ZAMITH – Sr. Ministro, cada caso é um caso, mas, por exemplo, a população brasileira observa o noticiário e vê, por exemplo, um episódio que envolve um garoto que foi seqüestrado de uma maternidade de Goiânia; descobriu-se, dezesseis anos depois que a mãe que o registrou como mãe verdadeira, na verdade, foi a pessoa, pelo menos apontada, como seqüestradora. Aí, se diz que prescreveu o suposto delito.


 


Independente do caso, sem entrar no mérito nesse caso, para a população leiga, de repente pensa assim: mas que lei é essa que, de repente, prescreve e a pessoa, aparentemente, foi responsável por isso. Não gostaria de citar um exemplo de um mérito, mas para aquele cidadão que pensa assim, de repente a prescrição surge como algo que beneficiará aquele que supostamente  foi acusado de um delito. Como fica a lei nesse caso?


                       


Falarei em tese. Paga-se um preço por se viver em um Estado democrático. Esse preço, em si, é a segurança jurídica. Segurança jurídica que pressupõe a estabilidade das relações. Daí se ter a prescrição. A prescrição existe para que o Estado atue dentro de um prazo. Extravasado esse prazo, tem-se o saneamento do tema. Se tem a preclusão, se tem, como um quê, a pá de cal.


 


No caso concreto, lastimavelmente, não conseguiu o Estado investigar a tempo de fornecer os dados para a propositura da ação penal. Logicamente, aí, pela segurança jurídica que se quer na vida em sociedade, se terá a prescrição. A impossibilidade de, com sucesso, ser proposta essa ação.


                       


Mas, no caso específico, seria seqüestro ou subtração de incapaz?


                       


 


Ouvi, hoje, nos jornais, que a promotora pública estaria encontrando base para sustentar a ocorrência de seqüestro, porque, de início, numa leitura, pelo menos apressada, uma leitura superficial, se teria a configuração da subtração de um incapaz. O tipo penal da subtração de incapaz pressupõe até problema relacionado à guarda do filho. Não a esse esdrúxulo ato de se retirar de uma maternidade uma criança recém-nascida.


                       


Agora, há um outro crime que diz respeito ao registro falso. Em relação a ele a corrente majoritária doutrinária é no sentido de que o termo inicial da prescrição coincide com o conhecimento do ato, e somente agora se teve ciência do vício quanto ao registro do menor.


                       


Aliás, o Senhor deu um declaração recentemente preocupado com o estado do menor que sofre o bombardeio da mídia, e ninguém se preocupa com o estado dele, numa situação difícil, ao saber que o pai que tratou durante dezesseis anos como pai biológico e descobriu que o pai é adotivo, e, depois, de toda essa confusão. O senhor falou isso recentemente.


 


Exato. Esse garoto está na fase de formação psíquica, formação ética, formação moral. E ele se vê impactado por essas notícias terríveis a respeito daquela pessoa que deu a ele amor e que o criou.


 


Creio que precisamos deixar com o Ministério Público, com o Judiciário a questão, em si, jurídica, e que a família natural e também a adotiva a cuidar do próprio menor, preservando-o para que ele não sofra as conseqüências do que acabou sendo esclarecido.



ANCHIETA FILHO – Ministro, de uma certa forma, o senhor citou “paixões humanas envolvidas”. Está aí justamente o fascínio do Direito? O Senhor tem esse fascínio pelo Direito, que, na realidade, ele lida com todas essas paixões humanas?


 


A Justiça em si é obra do homem. Costumo dizer que o conhecimento técnico se presume, que todo aquele, investido do ofício judicante, que atue como Estado-juiz tenha; o importante é ter a formação humanística. Eu mesmo, como juiz,  não parto da lei para o caso concreto; parto do caso concreto para a lei. Quando me defronto com o conflito, primeiro, idealizo a solução que entendo mais justa para esse conflito; depois vou à legislação buscar o apoio. E, quase sempre, porque a interpretação da lei é um ato de vontade, eu encontro esse apoio. Assim devem proceder todos os magistrados.


 


Aliás, é uma questão também complexa, as relações humanas, a questão da mídia que estamos falando a respeito desse menor de Brasília, e a mídia também vem sendo questionada e processada, jornalistas sendo processados e condenados. Por exemplo, o caso recente do companheiro Luís Nassif do jornal Folha de São Paulo, condenado a três meses de prisão por uma reportagem. Claro que pode existir o abuso em alguns casos, como o da escola-base, que recentemente o STJ se manifestou, mas também não haveria um cerco à liberdade de informação?


 


Cumpre sabermos o que fez Luiz Nassif. A meu ver, ele simplesmente transmitiu à sociedade uma decisão judicial, um julgamento procedido pelo Superior Tribunal de Justiça. Indaga-se: Ele injuriou? Ele difamou? Não, o julgamento é público. Ele revelou o resultado do julgamento de uma ação e adjetivou como uma aventura o ato de a empresa ter entrado em juízo, pleiteando o que pleiteou. Eu diria que o que demonstra que houve uma aventura é justamente a condenação nos honorários advocatícios que ela terá de satisfazer. Agora, sopesemos os dois valores: liberdade de informação, liberdade de informação jornalística, o Direito Público-Político subjetivo do cidadão de ser informado e bem informado, claro, com fidelidade aos fatos, e a intangibilidade e a privacidade do cidadão. Entre o individual e o coletivo, fico sempre com o coletivo. Receio muito que certas decisões acabem por inibir a atuação dos veículos de comunicação e que se tenha, no tocante à Constituição de 1988, e em que pesem os termos claríssimos desta Constituição, um verdadeiro retrocesso em termos de democracia.


 


O senhor citou essa necessidade realmente da formação humanística. Então o senhor toma isso como uma premissa: a importância de ter-se a formação humanística dos Membros do Judiciário. Também nós dos meios de comunicação e de todos aqueles que representam os segmentos da sociedade devem ter essa formação humanística?


 


Claro, percebendo a responsabilidade dos próprios atos e verificando, antes de tudo, a boa procedência do que será estampado, quer em jornal, quer na imprensa televisada, quer em rádio. Isso é muito importante. Nós devemos estar engajados em uma luta direcionada ao bem-comum. O bem-comum pressupõe a informação séria, a informação a partir de fatos que a viabilizem.


 


Ministro, é uma pergunta difícil para o senhor, mas o balanço desses oito anos do Governo Fernando Henrique, no que se refere ao Supremo Tribunal Federal, muitas demandas, principalmente – acho que deve ter sido a campeã – a demanda abusiva de impostos, a inconstitucionalidade da cobrança de impostos. Houve um exagero nessa cobrança, desrespeitando muito a Constituição nesse período?


 


Nós atravessamos uma fase de combate ao que era o mal maior, ou seja, a inflação. Aí, evidentemente, tivemos dificuldades de caixa. Não creio que se possa dizer que houve o lançamento no cenário jurídico de um número maior de leis inconstitucionais. As leis conflitantes com a Constituição são promulgadas, são editadas. Cabe evidentemente ao Judiciário glosar essas leis. Agora, estamos atravessando uma fase de grande esperança: a esperança na transformação do País econômico-financeiro em País social. Precisamos cuidar do nosso povo. Precisamos ter a nossa atenção voltada àqueles dez milhões de brasileiros que passam fome, aos quarenta milhões que estão abaixo da linha de pobreza, sob pena de termos, no futuro, problemas seriíssimos.


           


É isso o que o Sr. espera do próximo governo?


 


Sem dúvida alguma. A minha esperança está depositada nessa óptica, que penso ser a dos cidadãos em geral e dos cinqüenta e três milhões de eleitores que votaram em Lula.


 


ANCHIETA FILHO – 04h13. Fernando Zamith.


 


FERNANDO ZAMITH – O Sr. acha, então, que entramos nessa fase? Essa é a preocupação com o Brasil social?


 


 


O Brasil social. Creio que precisamos atentar para as nossas peculiaridades. Para o nosso mercado, por exemplo, que é desequilibrado, com oferta excessiva de mão-de-obra e escassez de emprego. Retomemos o desenvolvimento; deixemos em segundo plano a estagnação; e a alternância, falei, até, em alternância profunda, é salutar.


           


ANCHIETA FILHO – Sr. Ministro, o Senhor que é Presidente da Suprema Corte, o que fazer para melhorar a segurança do Brasil? O que falta: mudança de lei, vontade política?


           


Precisamos buscar as causas e percebermos que é indispensável dar oportunidade aos jovens. No Brasil, precisamos, por ano, de um milhão e duzentos mil novos empregos, e, nos últimos anos, não conseguimos manter o nível de empregos. Isso deságua na delinqüência. Todos nós temos freios inibitórios. Geralmente se dá o primeiro passo em uma transgressão que não é séria à ordem jurídica e, posteriormente, de repente, a pessoa se vê envolvida em um delito mais grave.


           


Quanto tempo ainda o Senhor estará à frente na Presidência do Supremo Tribunal Federal?


 


Estou com muita saudade da bancada, porque nela eu atuo com uma desenvoltura maior, com liberdade maior. Na Presidência, quando se trata de matéria constitucional ou regimental, sou o último a votar. Voto, também, quando ocorre empate de 10 integrantes no Colegiado. Nesse ano e meio não houve um empate sequer, o que revela que as questões colocadas se mostraram muito simples. Tenho pela frente, neste mandato de dois anos de Presidente, mais seis ou sete meses.


           


FERNANDO ZAMITH – Ministro, uma curiosidade para os nossos ouvintes: O Ministro do Supremo, em seu cotidiano, leva trabalho para casa, estudos e processos. Qual é a jornada de um Ministro diante de tanta complexidade de processos na Suprema Corte?


           


O juiz vocacionado, que entende a judicatura como algo pessoal, trabalha vinte e quatro horas por dia, sábados, domingos e feriados; e o faz prazerosamente. Eu lembraria Confúcio: Elege um trabalho que te dê prazer, que não trabalharás um dia sequer. É o que ocorre comigo e com minha mulher,  que também é magistrada.


           


Incluindo os domingos.


 


Sem dúvida alguma.


 


ANCHIETA FILHO – O Senhor ouve rádio, acompanha televisão?


 


Ouço rádio; faço a minha ginástica; vou ao mercado. Sou um homem com os pés no chão e que não deixou de ser, portanto, um concidadão.


           


Ministro, para finalizar a nossa entrevista, queria perguntar ao Senhor sobre uma obra de sua gestão, que é, na verdade, uma ação de sua gestão,  a criação da TV Justiça. Inclusive acompanhamos as sessões do Supremo Tribunal Federal, debates jurídicos, entrevistas com advogados, representantes de todo o Brasil, onde discutem temas jurídicos na TV Justiça. Houve primeiramente a TV Senado, depois a TV Câmara e, agora, surge a TV Justiça. Eu queria que o Senhor falasse da importância de se colocar uma sessão do Supremo Tribunal Federal no lar de qualquer brasileiro que tenha a TV a cabo.


 


As sessões, em si, são públicas, mas nem todos podem se deslocar a Brasília para o acompanhamento dos julgamentos que se processam no Plenário do Supremo Tribunal Federal. A TV Justiça resulta em maior transparência do Judiciário. Como disse, há conseqüência do fato de os juízes serem servidores públicos; mediante a TV Justiça, eles prestaram contas à sociedade em geral. Creio que todos ganhamos com isso.


 


O Houve resistência? Algum Ministro não gostou de ter a sessão transmitida?


 


O novo, geralmente, causa uma certa resistência, mas, logo depois, ocorre a compreensão – foi o que se verificou no tocante à TV Justiça.


 


Existe algum exemplo no mundo? O Senhor tem conhecimento?


 


Na América do Norte, temos um canal que é de absoluto sucesso e transmite os julgamentos. Lá há um sistema em que os juízes debatem de forma privada, ou seja, em sessão secreta. Apenas a divulgação do resultado é que ocorre em público. Aqui no Brasil, não. O julgamento em sessão secreta, sigilosa, é exceção.


 


Geralmente é aberta ao público?


 


Aberta ao público e há liberdade, inclusive, para se filmar o que está ocorrendo no recinto, em que verificado o julgamento.


 


Sr. Ministro, o que o Senhor acha dessa proposta do Deputado Luís Antônio Fleury de transferir a validade do novo Código Civil para o ano de 2004.


 


A problemática do Código Civil é que ele tramitou durante muito tempo e chega à eficácia maior já com alguns dispositivos ultrapassados. Acredito muito mais, como eu disse aqui, nas reformas setorizadas, capítulo por capítulo, naquilo que convenha e que atenda aos anseios populares. Talvez seja o caso de se discutir a prorrogação da valia, em si, da eficácia do Código Civil. Isso teríamos que aguardar a definição dos nossos representantes que são os deputados federais, representantes dos Estados e Senadores da República.


 


Sr. Ministro, o novo Código Civil entra em vigor no dia 11 de janeiro, se não me engano, do próximo ano de 2003. Nesse caso, existem aquelas leis que surgiram depois: Lei do Inquilinato, Concumbinato, ou seja, haveria alteração nessas outras leis?


 


No que ocorrer uma incompatibilidade, consideraras as novas normas, teremos a revogação. Ou seja, sobrará para o Judiciário, porque as controvérsias surgirão.


 


Agora, Sr. Ministro, pelo que estou entendendo, o Senhor defende reforma dos códigos. O Senhor acha que essa reforma do Judiciário, em geral, pode causar problemas. O que o Senhor menos gosta nesta proposta que está sendo discutida? Se o Senhor pudesse falar para o senador: senador, não vota isso porque vai causar problema, vai dificultar ainda mais. Quais são os pontos com os quais o Senhor não concorda?


 


Hoje, no almoço, no Instituto dos Advogados, ressaltei que as ações propostas, dez, quinze anos atrás, não foram substituídas no mesmo diapasão, no mesmo número. Eu ponderaria. Vamos aguardar um pouco, antes de se ter essa medida – sob a minha ótica, extravagante -, que é a medida alusiva ao efeito vinculante, à súmula vinculante. Só acredito no ofício judicante a partir da consciência daquele que o exerça e considerada a mais absoluta espontaneidade. O juiz não pode ser transformado em um batedor de carimbo, mesmo porque a tendência humana é única, é partir para lei do menor esforço, generalizando os casos. Cada processo é um processo, tem que ser julgado conforme os elementos de prova nele contidos e, também, considerada a verve dos advogados.


 


E o controle externo do judiciário?


 


Por que não partir para um controle interno, não o  considerado órgão em si, mas um órgão que tem uma composição heterogênea, ou seja, situado em Brasília. Receio que o controle externo possa implicar em inibição do juiz ao julgar.


 


Então, no caso da súmula vinculante, o Senhor tira o poder do juiz de Primeira Instância e acaba beneficiando as atitudes do governo.


 


Foi como disse, não podemos transformar o juiz em um batedor de carimbos, porque ele não o será, deixará a cargo do secretário, do assessor, do assistente judiciário, e, aí, será muito ruim em termos de solução dos conflitos de interesse.  Isso, evidentemente, é inaceitável, pelo menos sobre a minha ótica.


 


Teria um outro ponto que o Senhor acha que também pode trazer prejuízos, que pode não acelerar o andamento dos processos e acabar prejudicando-o?


 


Não. A reforma mexe com determinados aspectos, disciplinas, mas digo que podemos ter um resultado mais positivo com alteração dos códigos e, aí, dependemos de simples lei ordinária e não da alteração da Carta da República que deve ser algo perene, ou seja, a alteração da Constituição Federal não ocasionará uma rapidez na solução das pendências.


 


São 4h23min. Estamos entrevistando o Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, Presidente do Supremo Tribunal Federal.


Com a palavra o Sr. Fernando Zamith.


 


FERNANDO ZAMITH – Nesse novo governo, que assumirá agora em janeiro, deverão ser designados novos membros da Suprema Corte?


 


Realmente, vamos ter, no primeiro semestre, a nomeação de três integrantes de um colegiado de onze. Isso é muito. Só esperamos que esses novos integrantes sejam escolhidos a dedo, para, até mesmo, se buscar um maior equilíbrio.


 


Será realmente uma mudança diferente, já que o partido que assume o Poder Executivo  nunca assumiu, na esfera federal, tal dimensão. Como é feita essa escolha dos três novos membros da Suprema Corte?


 


Pelo sistema em vigor, o Presidente escolhe, só deve  fazê-lo se o indicado for maior de 35 anos, com ilibada conduta e conhecimento jurídico, e, aí, submeter o nome ao Senado da República. Havendo essa submissão, no Senado da República, tenhamos um debate um pouco mais amplo quanto ao perfil do indicado para posterior nomeação e posse no Supremo Tribunal Federal.


 


Quais são, no próximo ano, os Ministros que deverão deixar o Supremo Tribunal Federal por aposentadoria?


 


No dia 19 de abril, o Ministro Moreira Alves; 22 de abril, o Ministro Sydney Sanches; e, no dia 2 de maio, o Ministro Ilmar Galvão; sendo que, em 2004, no dia 8 de maio, teremos o afastamento do Ministro Maurício Corrêa, que não completará – tudo indica que será ele o próximo Presidente – o mandado de Presidente – ele ficará cerca de dez meses na presidência -; e, em 2006, ainda no primeiro mandato do Presidente Lula, teremos a quinta vaga, deixada pelo Ministro Calos Velloso.


 


ANCHIETA FILHO – Quer dizer, concentraram aí cinco Ministros no Governo Lula?


 


E, se reeleito, o  Presidente Lula – e espero que o seu Governo seja de pleno sucesso – terá uma outra vaga em 2007, deixada pelo Ministro Sepúlveda Pertence.


 


Realmente é uma mudança ampla, porque são onze os Ministros da Suprema Corte.  Com essas alterações, a mudança será bem ampla.


 


Sem dúvida. Alcançando seis integrantes: a maioria absoluta.


 


Ministro, o Senhor já conversou com o Presidente eleito, já fez alguma reivindicação? O Senhor acha que deve haver mais recursos para a Justiça ou algum outro tipo de recurso que não seja financeiro? O Senhor tem alguma reivindicação a fazer?


 


Não colocamos qualquer pretensão, em si, do Judiciário. Ficamos muito contentes quando o Presidente Lula em visita – foi a primeira vez que um Presidente eleito, antes da posse, visitou o Supremo Tribunal Federal -, ele se disse preocupado com o acesso do povo – dos menos afortunados, dos que não podem contratar um advogado – ao Judiciário. Então, falei que estou diante de um companheiro  – não há qualquer conotação política no vocábulo – de luta em prol do estabelecimento da Defensoria Pública nos Estados, especialmente no maior deles, que é São Paulo.


 


Ministro, uma curiosidade em relação ao passado do Presidente eleito: quando líder sindical, as pendências trabalhistas acabavam desaguando na Justiça do Trabalho e o sindicato que ele presidiu realmente comparecia às sessões, havia debates e ali muitos nomes se destacaram. Essa experiência prática do líder sindical, Luis Inácio Lula da Silva, pode se refletir agora, nessa preocupação que ele tem com relação ao acesso do povo à Justiça?


 


Creio que sim. Ele, evidentemente, sentiu as agruras de não ter esse acesso ao Judiciário e caminhará para o seu fortalecimento, para a viabilização, portanto, da chegada do povo ao Judiciário, ou seja, a possibilidade de aquele que não pode, sem prejuízo do próprio sustento, contratar um advogado, ajuizar uma ação. E a Constituição Federal assegura isso ao cidadão ao prever que ao Estado cumpre proporcionar assistência jurídica e judiciária àqueles que não podem demandar sem o próprio sustento.


 


Ministro, recentemente entrevistamos aqui na Jovem Pan o Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro Francisco Fausto, que falou a respeito dessa discussão em torno de redução da carga horária de trabalho de 44 para 40 horas semanais. O Senhor tem alguma posição? O Senhor defende também alguma reforma trabalhista? Em que pontos?


 


Precisamos examinar todas as saídas que viabilizem a criação de novos empregos e, talvez, uma delas seja esta: diminuir-se a carga horária semanal.


 


Quanto à organização sindical, o Senhor defende mudanças?


 


Sim; para se afastar a unicidade recursal. Que se deixe ao mercado a representatividade dos trabalhadores.


 


Agradeço ao Ministro Marco Aurélio Mello, homenageado hoje, aqui em São Paulo, pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, que, após essa homenagem, esse almoço no Nacional Clube, aqui no bairro do Pacaembu, gentilmente visitou os estúdios da Jovem Pan, ao lado de seu assessor Renato Parente e de outros assessores.


 


Ministro Marco Aurélio Mello, muito obrigado pela sua entrevista dentro desse “São Paulo Agora” da Jovem Pan. Uma boa tarde ao Senhor.


 


Uma boa tarde. A minha presença simplesmente simboliza o respeito que tenho pelo trabalho desenvolvido pela Jovem Pan.


 


RADIALISTA – É uma satisfação contar com a presença, em nossos estúdios, do Ministro-Presidente do Supremo Tribunal Federal. Agradecemos a sua presença e desejamos uma boa tarde aos nossos ouvintes.


         

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