“A Igualdade e as Ações Afirmativas” – Correio Braziliense – Ministro Marco Aurélio

20/12/2001 16:14 - Atualizado há 1 ano atrás

Ministro Marco Aurélio 



As Constituições brasileiras sempre versaram sobre o tema da isonomia. Entretanto a igualdade permaneceu, ao longo dos anos, no campo simplesmente formal. É o que se depreende, por exemplo, da Carta de 1824, na qual apenas se remetia o legislador à eqüidade, ou da Constituição republicana de 1891, quando se previu simplesmente que todos seriam iguais perante a lei. Na Carta popular de 1934, acresceu-se que não haveria privilégios por diversos motivos, ressalva esta retirada na Constituição outorgada de 1937, talvez por não se admitir a discriminação. Editaram-se, sob a égide dessa Carta, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Penal de 1940, mostrando-se ambos os diplomas insuficientes para corrigir as diferenças. Já na progressista Carta de 1946, reafirmou-se o princípio da igualdade e rechaçaram-se propagandas preconceituosas, o que fez surgir indiretamente no cenário jurídico a lei do silêncio, inviabilizando-se de modo mais incisivo a repressão às manifestações de intolerância. Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, começou-se a reconhecer a real situação do Brasil em relação ao problema, vindo à balha, em 1951, a primeira lei penal sobre a discriminação – tipificada, à época, como mera contravenção penal -, ressaltando-se, na justificativa do diploma, que a postura do Estado deve servir de exemplo ao cidadão comum, haja vista o racismo então verificado em carreiras civis, como a da diplomacia, e militares. Em 1964, o Brasil subscreveu a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho, na qual definida a discriminação: “Toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha o efeito de anular a igualdade de oportunidade ou de tratamento em emprego ou profissão”. Na Carta de 1967, deu-se um passo a mais, ao constitucionalizar-se a punição do preconceito, mas as leis ordinárias continuavam insuficientes ao fim almejado. Com a Lei da Imprensa, em 1967, o racismo passou a ser crime, e a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 1968, dispôs que não seriam consideradas discriminação medidas especiais – e começamos a adentrar aqui o campo das ações afirmativas – “tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos”. Na Emenda Constitucional nº 1, de 1969, repetiu-se o texto da Carta anterior, proclamando-se, pedagogicamente – e esse trecho encerra a principiologia -, que não seria tolerada a discriminação. 


Esse foi o quadro de igualização simplesmente formal notado pelos Constituintes de 1988, a evidenciar a necessidade de correção de rumos. Na Constituição atual, adotou-se, pela primeira vez, um preâmbulo, em que se dizia da opção por uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A Lei Maior inicia-se com o artigo que lhe revela o alcance: constam, como fundamentos da República, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, à percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter, a favor daquele que é tratado de modo desigual. Nesse preceito, são objetivos precípuos da República: primeiro, construir – preste-se atenção a esse verbo – uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional – novamente o verbo está a conduzir a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por último, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Passou-se, assim, de uma igualização estática, negativa – no que se proibia a discriminação -, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” denotam ação. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar as mesmas oportunidades. Há de ter-se como ultrapassado o sistema simplesmente principiológico. A postura, mormente dos legisladores, deve ser, sobretudo, afirmativa. O fim almejado por esses dois artigos da Carta é a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza – uma das formas de discriminação – visando-se, acima de tudo, ao bem de todos. No âmbito das relações internacionais, a Constituição de 1988 estabelece que prevalecem as normas concernentes aos direitos humanos. No artigo 4º, inciso VII, repudia-se o terrorismo, colocando-se no mesmo patamar o racismo. Encontramos aqui, mais do que princípios, verdadeiras autorizações para uma ação positiva. No campo dos direitos e garantias fundamentais, enfatizou-se a igualização, ao preceituar-se, no artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Seguem-se 77 incisos, cabendo destacar o XLI, consoante o qual “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”; o inciso XLII, a prever que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Nem a passagem do tempo, nem o valor “segurança jurídica” suplantam o realce dado pelo constituinte ao odioso crime racial. Mais ainda: conforme o § 1º do artigo 5º, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, cumprindo aos responsáveis pela supremacia do Diploma Máximo buscar meios para torná-lo efetivo. Além disso, de acordo com o § 2º desse artigo, os direitos e garantias constitucionais não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, e, aqui, passou-se a contar com os denominados direitos e garantias implícitos ou insertos nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Vigora também a Lei nº 7.716/89, na qual capitulado, como crime, à margem da Carta, certos procedimentos. Falta-nos, então, para afastarmos do cenário as discriminações, uma mudança cultural, uma conscientização maior dos brasileiros; urge a compreensão de que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento igualitário, de modo a saldar dívidas históricas para com as impropriamente chamadas “minorias”, ônus que é de toda a sociedade.


Consideremos, agora, o princípio da realidade: é necessário pôr em prática o que está no papel. No Direito do Trabalho, esse princípio é acionado no dia-a-dia, sobrepondo-se ao texto do contrato firmado pelo tomador e prestador de serviços. A prática comprova, por exemplo, que, diante de currículos idênticos, prefere-se a arregimentação do branco e que, sendo discutida uma relação locatícia, dá-se preferência aos brancos. Nas lojas de produtos sofisticados, raros são os vendedores negros, raríssimos os gerentes. Em restaurantes, serviços que impliquem contato direto com o cliente geralmente não são feitos por negros. Nos locais em que há a presença maior de negros, estes atuam como manobrista, leão-de-chácara, etc. Há exceções, felizmente, pois já contamos com algumas grandes empresas que procuram equilibrar essa equação; uma delas começou com essa política em 1970, mas mesmo assim, até aqui, só conseguiu compor o quadro funcional com 10% de negros. Iniciativas semelhantes servem para escancarar o problema, para abrir nossos olhos a esse impiedoso tratamento que resulta numa discriminação inaceitável. 


É preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se um fracasso. Há de se fomentar o acesso à educação; urge um programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se meninos e meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. E o Poder Público, desde já, independentemente de qualquer diploma legal, deve dar à prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar os que têm sido discriminados. O setor público tem à sua disposição, ainda, as funções comissionadas que, a serem preenchidas por integrantes do quadro, podem e devem ser ocupadas pelas ditas minorias. Exemplo vivo deu-nos há pouco o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Não se há de cogitar que esse procedimento conflita com a Constituição, porque, em última análise, objetiva a efetividade da própria Carta. As normas proibitivas são ineficazes para afastar do nosso cenário a discriminação. Precisamos contar com normas integrativas. No momento, tramita no Senado Federal o Projeto PLS nº 650, de iniciativa do senador José Sarney, sobre quota para a população negra no acesso aos cargos e empregos públicos, à educação superior e aos contratos do fundo de financiamento ao estudante do ensino superior, quota que, diante do total dessas minorias – e apenas são minorias no tocante às oportunidades -, mostra-se singela: 20%. Essa legislação deve ser imperativa, ante a necessidade de o Estado intervir para corrigir desigualdades, e de nada adiantaria tal intervenção se às normas de proteção se emprestasse a eficácia dispositiva. Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição não pode ser acusada de inconstitucional. Entendimento divergente resulta em subestimar ditames maiores da Carta da República, que agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher e da introdução de incentivos; no artigo 37, inciso III, ao versar sobre a reserva de vaga – e, portanto, a existência de quotas -, nos concursos públicos, para os deficientes; nos artigos 170 e 227, ao emprestar tratamento preferencial às empresas de pequeno porte, bem assim à criança e ao adolescente. No campo da legislação ordinária, a Lei nº 8.112/90 fixa a reserva de 20% das vagas, nos concursos públicos, para os deficientes físicos; a Lei eleitoral nº 9.504/97 dispõe sobre a participação da mulher como candidata e estabelece também o mínimo de 30% e o máximo de 70% de candidatos de cada sexo. A proteção aqui concorre também em benefício dos homens. Talvez o legislador haja receado uma interpretação apressada, levando em conta um suposto conflito com a Carta, ao prever, como ocorreu anteriormente, uma quota específica para as mulheres. Já a Lei nº 8.666/93 viabiliza a contratação, sem licitação, mas pelo preço de mercado, de associações, sem fins lucrativos, de portadores de deficiência física. No sistema de quotas, deverá ser considerada a proporcionalidade, a razoabilidade, dispondo-se, para tanto, de estatísticas. Tal sistema há de ser utilizado para a correção de desigualdades. Assim, deve ser afastado tão logo eliminadas essas diferenças.


O Judiciário pode contribuir, e muito, nesse campo, como o fez a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, após a Segunda Guerra Mundial. Até então, só o legislador atuava. Percebeu aquela Corte que precisava, realmente, sinalizar para a população, de modo a que prevalecessem, na vida gregária, os valores básicos da Constituição americana. Diante de um conflito de interesses, cumprirá ao juiz ter sempre presente o mandamento constitucional de regência da matéria. Só teremos a supremacia da Carta quando implementarmos a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. A correção das desigualdades é possível. Por isso, façamos o que está ao nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não há espaço para arrependimento, para acomodação, para o misoneísmo. Mãos à obra, a partir da confiança na boa índole dos brasileiros e nas instituições pátrias. 


(*) Texto extraído de palestra proferida, em 20 de novembro de 2001, no Seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Artigo publicado no Correio Braziliense, 20.12.2001, página 5.

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