Relator propõe homologação parcial de plano do Rio de Janeiro para reduzir letalidade policial

Ministro Edson Fachin observou que, apesar dos avanços decorrentes de normas editadas pelo governo estadual, são necessárias medidas complementares para reduzir a violação massiva de direitos fundamentais.

05/02/2025 18:54 - Atualizado há 8 horas atrás
Ministros no Plenário do STF Foto: Gustavo Moreno

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, nesta quarta-feira (5), o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, proposta para reduzir a letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro. Após o voto do relator, ministro Edson Fachin, propondo a homologação parcial do plano apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro para reduzir a letalidade policial e sugerindo medidas para sua complementação, o julgamento foi suspenso. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, ponderou que, em razão da profundidade do voto e da complexidade da questão, é necessário um prazo para que o colegiado busque a construção de consensos sobre os diversos pontos.

Violação

A ação foi apresentada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), alegando violação massiva de direitos fundamentais no estado, em razão da omissão estrutural do poder público em relação ao problema.

Para o partido, há um quadro de grave violação generalizada de direitos humanos em razão do descumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) no caso Favela Nova Brasília. A decisão reconheceu omissão relevante e demora do Estado do Rio de Janeiro na elaboração de um plano para a redução da letalidade dos agentes de segurança. Decisões da CorteIDH são vinculantes para o Estado brasileiro, ou seja, representam uma obrigação

Complementação

No voto apresentado nesta quarta, o ministro Fachin propôs a homologação parcial do plano apresentado pelo governo estadual. Ele observou que, apesar dos avanços obtidos a partir de diretrizes fixadas pelo Supremo em decisões cautelares proferidas na ADPF 635, algumas medidas ainda não foram totalmente implementadas.

O relator constatou que, a partir de dezembro de 2023, foram editados diversos atos normativos, masa superação efetiva das violações de direitos fundamentais (estado de coisas inconstitucional) demanda determinações complementares, a consolidação de medidas estruturais em andamento e um novo ciclo de acompanhamento e monitoramento com coordenação local

Independência

No voto, o relator propõe a adoção de medidas para assegurar a independência das investigações sobre mortes (de civis e policiais) em ações e operações policiais e para aumentar a transparência dos dados sobre elas. Propõe, ainda, a criação de um comitê para acompanhar o cumprimento das medidas, com a participação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ), da Defensoria Pública do estado (DPE-RJ), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do governo estadual, de representantes da sociedade civil e de especialistas em segurança pública.

Escolha civilizatória

Fachin salientou que, por mais grave seja a situação da segurança pública no Rio de Janeiro ou em outro estado do país, as soluções devem se dar dentro das margens e limites do Estado de Direito. Além de ser uma imposição constitucional, “essa é uma escolha civilizatória”, observou. Ele enfatizou que as medidas propostas não representam enfraquecimento ou desprestígio da atividade policial. Ao contrário, demonstram preocupação com a garantia de direitos da população civil e também dos agentes das forças de segurança.

Aumento de operações

Segundo Fachin, dados públicos indicam que, apesar do grande número de operações realizadas entre 2019 e 2023, houve uma redução de 52% nas mortes decorrentes de intervenção policial, inclusive do número de policiais mortos em serviço. Segundo o MP-RJ, o número de operações policiais aumentou, com registro oficial de 457 somente no primeiro quadrimestre de 2024. Esse dado derruba insinuações de que as restrições impostas pelo Supremo estariam impedindo o trabalho adequado das forças policiais e fortalecendo organizações criminosas.

Redução da criminalidade

As estatísticas também mostram a queda dos índices oficiais de crimes que resultaram em mortes (18,4%), roubos de veículo (44%), roubos de rua (57,2%), roubos a transeuntes (60,9%), roubos a coletivos (64,3%), roubos de celular (42,2%) e roubos de carga (56,8%).

Dados referentes a 2024 apontam que o índice de homicídios dolosos foi o menor da série histórica, desde 1991, com redução de 11% em relação a 2023, e que as mortes decorrentes de intervenção policial mantiveram a tendência de queda, com redução de 20%. Em relação ao número de roubos, houve aumento, mas fortemente concentrado no mês de dezembro.

Para o ministro, os números evidenciam que a adoção de parâmetros de transparência e controle na atividade policial possibilitam o exercício das funções de segurança pública de forma competente e sem elevação de índices de criminalidade.

Problemas crônicos

No voto, o ministro reconheceu a gravidade da situação da segurança pública do Rio de Janeiro, especialmente em razão do controle do território por organizações criminosas, da presença de foragidos de outros estados sob proteção armada e da circulação ilegal de fuzis e armamento pesado. Observou, contudo, que são problemas crônicos, relacionados com dinâmicas da criminalidade organizada em âmbito nacional, sem relação com decisões do STF.

Fachin refutou alegações do governo estadual de que as medidas cautelares emitidas na ADPF 635 teriam tido como consequências práticas a “migração de criminosos nacionais e estrangeiros para o Rio de Janeiro” ou a “criação de entrepostos invioláveis para a comercialização de armas e drogas nas comunidades do Rio de Janeiro”. Segundo o ministro, essa alegação não tem respaldo fático e histórico.

Ele destacou que, desde meados de 2016, há um conflito violento entre duas grandes organizações criminosas fortemente armadas, que buscam se expandir para além de suas sedes, em São Paulo e Rio de Janeiro, visando ao domínio territorial e à adesão de outras organizações criminosas por todo o território nacional, sobretudo nas regiões Norte e Centro-Oeste. Essas dinâmicas, explicou, impulsionam a circulação de foragidos de outros estados por todo o país. Segundo ele, a presença de foragidos no Rio de Janeiro decorre do conflito, e não de uma suposta proteção propiciada pelas decisões na ADPF 635.

Transparência

Para assegurar a transparência e embasar a adoção de providências para continuar a redução da letalidade, o ministro propõe que o governo estadual passe a divulgar dados sobre uso excessivo da força ou abusivo da força legal e de civis vitimados em confronto armado com a participação de forças de segurança em que autoria do disparo seja indeterminada.

O estado também deverá divulgar dados desagregados sobre as ocorrências com morte de civil ou de policial, especificando a corporação envolvida (se polícia civil ou militar), qual unidade ou batalhão, se o agente envolvido estava em serviço e se o fato ocorreu no contexto de operação policial. Nas ocorrências com morte de policial, deverá ser especificado se a vítima estava em serviço.

Sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de crimes, a investigação será atribuição do Ministério Público. Caso se trate de crime intencional (doloso) contra a vida, a apuração ocorrerá no âmbito da Justiça comum.

Afastamento temporário

O ministro citou um estudo da Universidade Federal Fluminense que indica concentração da letalidade policial no Rio de Janeiro, tanto do ponto de vista funcional como territorial. Nesse sentido, ele dá prazo de 180 dias para que o governo estadual regulamente a aferição da incidência de letalidade desproporcional na atuação policial, modulando aspectos como o tipo de policiamento exercido e a área de atuação.

As regras deverão prever o afastamento preventivo das atividades de policiamento ostensivo para os agentes que se envolvam em mais de uma ocorrência com morte no período de um ano. Ele explicou que esse afastamento é temporário, sem necessariamente consequências disciplinares, que devem ser eventualmente apuradas em investigação específica, caso necessário.

Câmeras corporais

O ministro propõe um prazo de 120 dias para que seja comprovada a implantação de câmaras corporais na Polícia Civil, mas atendeu a um pedido do governo estadual para que os agentes da corporação as utilizem apenas nas ações ostensivas, inclusive em operações policiais planejadas, e em atividades ou diligências externas. Para compatibilizar a determinação com a situação financeira do estado, caso não haja equipamentos para todos os agentes, as câmeras devem ser destinadas, prioritariamente, para as forças especiais e unidades ou batalhões que tenham os maiores índices de letalidade.

Também levando em consideração a situação fiscal do estado, Fachin considera necessário autorizar a continuidade de repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) nos contratos antigos, que previam o armazenamento das imagens por 60 dias. Segundo as regras do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, para viabilizar os repasses, as imagens devem ser preservadas por pelo menos 90 dias. A medida vale apenas para contratos em vigência até a conclusão do julgamento.

Perícia

Para assegurar a independência das investigações, o voto proíbe a atuação de peritos vinculados à Polícia Civil nas investigações em que haja suspeita de mortes intencionais em ações ou operações da corporação. Nestes casos, o MP-RJ deverá tomar as providências cabíveis para viabilizar a perícia científica com outros profissionais, inclusive por meio de convênio com a União (Polícia Federal), ou requisitando a realização de perícia técnica.

Se o MP-RJ indicar que não tem a estrutura necessária para a realização da perícia em algum caso específico, excepcionalmente, para evitar a paralisação da investigação, fica autorizado o prosseguimento com a realização da análise por peritos da Polícia Civil.

Fachin rejeitou o pedido formulado na ação para desvincular a Superintendência-Geral de Polícia Técnico-Científica do estado da estrutura da Polícia Civil. Segundo ele, não é possível impor, por decisão judicial, uma reforma na organização político-administrativa do governo estadual.

Contudo, ele declara a inconstitucionalidade do dispositivo que atribui a chefia da Polícia Técnico-Científica a um delegado. Ele explicou que essa subordinação retira a autonomia técnica, científica e funcional da perícia, já reconhecida em diversos precedentes do STF.

Comitê de acompanhamento

O relator também determina a criação de um comitê para acompanhar o cumprimento da decisão do Supremo e, em conjunto com o governo estadual, apoiar sua implementação. O comitê terá a coordenação do MP-RJ, com a participação da Defensoria Pública, da Secretaria de Segurança Pública, da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, além de representantes da sociedade civil e especialistas na área de gestão e políticas públicas.

Apesar de sua natureza consultiva, se houver o descumprimento da decisão, o comitê comunicará o fato ao CNJ, para análise de eventuais providências, e ao MP-RJ, para apuração de eventual responsabilidade administrativa e criminal. Segundo a proposta, o período inicial de monitoramento seria de quatro anos, e a condição para o encerramento dos trabalhos seria a constatação de que os “indicadores de violência desproporcional” estejam em níveis aceitáveis.

(Pedro Rocha/GMEF)

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