Nada de olho por olho – Entrevista para a Isto é

26/09/2001 17:29 - Atualizado há 8 meses atrás







  

Nada de olho por olho


O presidente do Supremo, Marco Aurélio Mello, teme que a retaliação dos EUA aos terroristas se transforme numa nova versão da lei de Talião


Por Leonel Rocha


Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, em maio deste ano, o ministro Marco Aurélio Mello, um carioca de 55 anos, flamenguista fanático, avisou que não iria tocar fogo na República. Foi um recado para acalmar o Palácio do Planalto, parlamentares e até os próprios colegas do Judiciário, que o consideram um juiz de língua afiada e de decisões polêmicas. E, de fato, é. Em abril de 1996, surpreendeu a todos quando inocentou o namorado adulto de uma menina de 14 anos, acusado de estupro e sedução. Marco Aurélio chegou a este veredicto porque a menina há tempos mantinha relações sexuais com o homem. Casado com a juíza federal Sandra De Santis Mello, com quem tem quatro filhos, Marco Aurélio foi nomeado em 1990 para o Supremo pelo primo, o ex-presidente Fernando Collor de Mello. Ao assumir a presidência do STF, comprou algumas brigas. Demitiu 20 funcionários aposentados que continuavam como assessores e multiplicavam os salários e suspendeu o reajuste de 11,98% dos funcionários do Tribunal por falta de previsão orçamentária. Na semana passada, cortou o fausto lanche com produtos importados servido todos os dias a ministros e funcionários. Com sua linguagem empolada, o presidente do Supremo não se nega a opinar sobre o que está sendo discutido pela sociedade. Sobre os atentados terroristas nos Estados Unidos, alerta para o risco de vingança dos americanos. “Não podemos voltar à lei de talião.” Quanto aos assuntos internos brasileiros, também toma posições. É a favor das cotas para negros nas universidades e critica o adiamento do reajuste salarial concedido pelo governo aos militares. “Esta indefinição só gera insegurança”, argumenta. Na opinião do ministro, o grande culpado pelo atraso no trabalho da Justiça é o próprio Estado. “É incompreensível que mais de 80% dos processos em tramitação no STJ e Supremo tenham sido provocados pelos governantes”, critica o ministro, que na entrevista a seguir falou desta e de outras polêmicas.


ISTOÉ – Ministro, que reflexão devemos ter depois dos atentados nos Estados Unidos?


MINISTRO MARCO AURÉLIO – Nada justifica a monstruosidade que se viu pela televisão. Devemos parar e tentar perceber a origem disso, porque na vida nada surge sem uma causa. Será que não houve erro na busca do entendimento e na correção das desigualdades? O poder da força, que é a minoria, tem que parar para ouvir a maioria da população do mundo que está na miséria. É preciso uma solidariedade maior e jamais rechaçar o entendimento. Não é possível, apenas porque um país detém o poder da força, radicalizar em nenhum campo. O bom senso deve prevalecer neste momento. Se é preciso buscar os responsáveis, também é fundamental a racionalização, e não o mesmo radicalismo dos que derrubaram os aviões em Nova York e Washington.


ISTOÉ – O que o sr. mais teme agora, depois dos atentados?


MA  – Receio que prevaleçam paixões condenáveis e a população civil de países que abrigam terroristas pague por ações de grupos radicais. Não podemos voltar à lei de talião, em que o princípio é olho por olho, dente por dente, porque vivemos num mundo civilizado. É preciso que as autoridades internacionais reforcem o diálogo e jamais abandonem a negociação.


ISTOÉ – E a posição do Brasil diante desta guerra não declarada?


MA – O Brasil tem na Constituição normas que rechaçam o terrorismo, que não pode ser encarado, de forma alguma, de maneira contemplativa. O terrorismo merece total excomunhão.


ISTOÉ – O Congresso dos Estados Unidos suspendeu as salvaguardas individuais. Isso não é um perigo?


MA – Não precisamos de regras de exceção, condenáveis sob todos os ângulos, para apurar a responsabilidade de quem cometeu crimes contra a humanidade como os que presenciamos em Nova York e Washington. O respeito às salvaguardas constitucionais é o preço que pagamos por viver na democracia. O respeito à dignidade do homem está acima de tudo. Não é pelo caminho da suspensão dos direitos individuais que se responsabiliza quem errou. Nada justifica a colocação em plano secundário dos direitos inerentes ao homem, que visam preservar sua dignidade.


ISTOÉ – Por que os servidores públicos têm direito ao reajuste salarial acima do porcentual que o governo propõe?


MA – O Supremo Tribunal definiu este direito porque a Constituição assegura a irredutibilidade dos salários. Logo, é preciso que se mantenha a equação inicial de que ao trabalho corresponde o salário justo. E esta equação não está equilibrada. O salário foi corroído pela inflação e perdeu o poder de compra. Além do reajuste, o Supremo também apontou a omissão do Executivo, que ainda não encaminhou projeto de lei ao Legislativo com a previsão do reajuste.


ISTOÉ – Mas isso não é reindexar novamente os reajustes salariais, ressuscitando a inflação, como argumenta o presidente Fernando Henrique?


MA – Mas por que este raciocínio apenas em relação aos salários? Por que não excomungar vez por todas as indexações, acabando com o reajuste automático de tarifas de serviços públicos? No setor privado, temos a revisão de preços de mercadorias e o mercado atua também a partir de uma inflação. Nós precisamos manter a política governamental harmonizada com a Constituição, e não o inverso. Estou certo de que o Executivo cumprirá a decisão do Supremo, encaminhando nos próximos dias um projeto de lei ao Congresso estabelecendo a revisão dos vencimentos. Vivemos num Estado democrático de direito, e, se houver o descumprimento da decisão da mais alta corte do País, aí teremos que repensar o Brasil.


ISTOÉ – Por que o Supremo não toma a mesma decisão sobre os reajustes dos trabalhadores do setor privado, que foram atingidos pela mesma inflação e são regidos pelo mesmo princípio constitucional que impede redução de salários?


MA – Os trabalhadores organizados acabam repondo o poder aquisitivo negociando ou mediante acordo ou convenção coletivos. Quem não está organizado tem a Justiça do Trabalho para reclamar a reposição salarial através do dissídio coletivo.


ISTOÉ – O governo concedeu e depois adiou o reajuste salarial dos militares. Que tipo de confusão isso pode gerar?


MA – Não se deve acenar com uma vantagem e depois suprimi-la. Ao conceder o reajuste e depois retirá-lo, o governo gera uma grande insegurança jurídica. Os militares já tinham programado seus orçamentos com base na promessa do governo e agora têm suas expectativas suspensas.


ISTOÉ – Diante de todas as mudanças nas relações empresa-empregado, Estado-cidadão, globalização, não deveria haver uma flexibilização da lei trabalhista?


MA – Esta flexibilização é uma utopia. Temos oferta excessiva de mão-de-obra e escassez de emprego. Então, a interferência do Estado nessa relação jurídica é indispensável. Daí a necessidade do poder normativo da Justiça do Trabalho. Enquanto nós tivermos o mercado com esta peculiaridade, a interferência do Estado visará corrigir desigualdades. A Justiça do Trabalho tem sido responsável pelo restabelecimento da paz social. E o seu fim, além de sobrecarregar a Justiça Federal, levaria o trabalhador, para sobreviver, a aceitar as condições propostas pelas empresas. Os empresários, na busca desenfreada do lucro, ofereceriam o menor salário possível. Isso só seria bom se pretendêssemos o caos.


ISTOÉ – Qual reforma deve ser feita no Poder Judiciário?


MA – Dá-se uma ênfase muito grande à mudança constitucional para reformar o Judiciário, como se fôssemos conseguir celeridade e economia processuais ou rapidez na prolação das sentenças. O que precisamos é buscar as causas. Nos últimos 30 anos tivemos mais de dez planos econômicos elaborados sem a participação decisiva do técnico do direito, com a predominância do enfoque econômico, tecnocrata, atropelando os direitos para se tentar controlar a inflação. Com isso, ficaram em segundo plano os direitos adquiridos, como, por exemplo, no caso do FGTS. Hoje temos estabilidade econômica razoável, mas a instabilidade econômico-financeira de outrora foi substituída pela instabilidade normativa. Nos últimos anos, 80% dos processos em tramitação no Supremo e no Superior Tribunal de Justiça envolvem o Estado – União, Estados e municípios – autarquias e fundações públicas. Os governantes – e não me refiro apenas aos atuais – têm claudicado e tripudiado o cidadão. Isso é incompreensível. Os governos têm gerado o conflito, tanto que se fala muito em esqueletos que terminam aparecendo.


ISTOÉ – Quando o Executivo não concede reajuste salarial aos servidores, quando não paga os precatórios ou quando suspende unilateralmente a liberação de verbas previstas na lei orçamentária, descumpre a Constituição. O que fazer para que o governo cumpra a lei?


MA – O governante que não cumpre a lei comete crime de responsabilidade. No caso dos precatórios, a Constituição prevê que prefeituras, Estados e União devem prever nos seus orçamentos o pagamento dos precatórios. No Supremo Tribunal temos cerca de três mil processos pedindo intervenção em Estados por falta de pagamento dos precatórios. Por que o Estado de São Paulo deve hoje cerca de R$ 8,5 bilhões em precatórios? Com o critério de não se indexar o valor dos precatórios, apostou-se na morosidade da Justiça e partiu-se para o descumprimento das decisões judiciais. Um dirigente público nunca teve receio de desapropriar um bem imóvel porque imaginava que não teria de liquidar em seu mandato o valor da indenização, prevista na Constituição. E empurrava o problema para o sucessor. Esta situação se agravou. A União, Estados e municípios são perdedores na grande maioria das ações. E mesmo assim, quando a decisão da Justiça sai, os governantes não a cumprem. E o Judiciário acaba desacreditado pelo cidadão, que não bate à porta do Executivo nem do Legislativo porque lá elas não abrem.


ISTOÉ – Por que não se decreta intervenção em Estados que não pagam precatórios?


MA – Temos condições e o instrumental para compelir o dirigente público a respeitar as decisões do Judiciário, mas imagina-se que esta intervenção seja demasiadamente traumática. E ainda há uma corrente que sustenta que só se deve definir a intervenção quando se têm recursos disponíveis para uso imediato. É muito importante que o Estado dê o exemplo.


ISTOÉ – Os Três Poderes são independentes e harmônicos. Mas o Executivo elabora e executa o orçamento, mantendo a prerrogativa de adiar e até proibir gastos dos demais poderes. Não há dependência do Legislativo e do Judiciário ao Executivo?


MA – Isto não deveria ocorrer. O Judiciário tem sempre a última palavra sobre qualquer impasse. Quanto ao orçamento, a Constituição prevê autonomia dos poderes no seu encaminhamento. O Executivo não pode alterar o orçamento do Judiciário. Não cabe deixar de liberar o dinheiro porque o orçamento aprovado pelo Congresso é para valer. Quando o Executivo suspende a liberação do recurso previsto no orçamento, não cumpre a Constituição. A lei orçamentária aprovada no Congresso tem de ser observada.


ISTOÉ – O Congresso limitou o uso das MPs, mudando os critérios para adoção e vigência. Mas elas continuam com o poder de vigir por 60 dias e podem ser alteradas pelo Executivo. Como fica a cabeça do juiz com tanta mudança?


MA – Juízes, advogados do Estado e do setor privado e o Ministério Público convivem com um verdadeiro entulho legislativo. Primeiro, temos duas espécies de revogação de atos normativos. A expressa, que cita as leis que deixam de vigir, e a revogação implícita, que sugere inúmeras dúvidas ao dizer “revogam-se as disposições em contrário”. E aí dane-se o operador do direito para definir o que é contrário e o que não é contrário. Os interesses dos envolvidos num conflito é que nortearão esta definição. Os magistrados, então, que são os responsáveis pela declaração do direito incidente na espécie, do direito posto pelos legisladores, vivem um verdadeiro pandemônio, tendo de pinçar o que está em vigor, o que não está em vigor, qual a medida provisória em vigor.


ISTOÉ – O Congresso Nacional vai discutir se aprova ou não uma lei impondo cotas para negros nas universidades. O que o sr. pensa da idéia?


MA – Aprendi no direito do trabalho que as correções de desigualdades só se conseguem com a obrigatoriedade da lei. Neste caso, especificamente, precisamos avançar com uma política afirmativa, aprovando uma legislação que permita dar mais oportunidades aos negros.


ISTOÉ – Quem são os responsáveis por tanta demora nos julgamentos?


MA – Não podemos exigir do juiz uma produção maior do que vem ocorrendo. É incompreensível que sob a direção de um mesmo juiz se tenha cerca de dez mil processos. É hora de se mudar a postura. Hoje, lastimavelmente, os governantes apostam na morosidade da Justiça. Os governos devem respeitar o ordenamento jurídico em vigor.

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