Painel inaugural do encontro de cortes do Mercosul debate caminhos para eliminar assimetrias constitucionais

Os avanços institucionais necessários para o aprofundamento da integração do Mercado Comum do Sul (Mercosul), com a eventual produção de normas jurídicas supranacionais e a criação de uma Corte de Justiça do bloco do Cone Sul foram pontos debatidos no painel inaugural do 2º Encontro de Cortes Supremas do Mercosul, realizado no auditório da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília. Na manhã desta segunda-feira (29/11), participaram do primeiro grupo de trabalho os ministros das cortes supremas dos quatro países que compõem o bloco (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), em torno do tema “assimetrias constitucionais”.
A representante da Corte Suprema de Justiça da Argentina, ministra Elena Highton de Nolasco, observou que “as assimetrias são claras e os obstáculos, reconhecidos”, já que, segundo ela, a pirâmide jurídica do Mercosul é uma para cada país. De acordo com a magistrada, um dos maiores problemas para a integração é a estrutura institucional não uniforme entre os países. Na Argentina, ao contrário do Brasil, por exemplo, os tratados sobrepõem-se à Constituição Federal.
As assimetrias entre os países do Mercosul decorrem de uma “cultura que estava longe de valorizar os valores da supranacionalidade”, observou o ministro do STF Gilmar Mendes. Ele destacou a equivalência hierárquica entre leis e tratados internacionais, firmada na jurisprudência brasileira, e explicou que a própria interpretação do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal - segundo o qual os direitos e garantias constitucionais não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela [Constituição] adotados, ou dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte – é um “foco de tensão” quanto aos tratados de direitos humanos.
A interpretação dada pelo Supremo, segundo o ministro, foi a de que esses tratados seriam recebidos como lei ordinária. No entanto, com a recente aprovação da reforma do Judiciário pelo Congresso Nacional, ficou estabelecido que os tratados de direitos humanos aprovados segundo o rito de emenda constitucional (três quintos dos votos das duas Casas, em dois turnos) terão força de emenda à Constituição.
Gilmar Mendes também ressaltou a interpretação do artigo 4º, parágrafo único da Constituição Federal, que dispõe que o Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação da comunidade latino-americana de nações. “Haveria aí a possibilidade, ou reconhecimento, de um Direito supranacional?”, questionou Mendes, lembrando que alguns juristas entendem que essa seria uma cláusula de transferência de soberania. “Sabemos que não tem sido esse o entendimento do STF”, afirmou, já que o Tribunal exige que a adaptação seja feita por emenda constitucional.
Outro ponto importante da exposição do ministro foi o do controle da legitimidade dos tratados. No Brasil, realiza-se a posteriori, por meio de ação direta de inconstitucionalidade, ou por controle incidental, enquanto que, em muitos países europeus, é feito de forma preventiva, ou seja, antes de o tratado ser incorporado ao ordenamento jurídico nacional. Segundo o ministro, a proposta de controle preventivo no Brasil consta do relatório do grupo de trabalho coordenado por ele.
A hierarquia dos tratados também foi tema da exposição do professor Jorge Fontoura, vice-presidente do Centro de Estudos de Direito Internacional (Cedi) e consultor legislativo de Direito Internacional da Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, e do professor Luiz Roberto Barroso. Eles ressaltaram que, no Brasil, não há primazia do Direito Internacional sobre o Direito Interno (leis ordinárias e normas constitucionais) e que, apenas no campo tributário e no de transporte aéreo, terrestre e aquático, o tratado prevalece sobre as normas internas. Nos demais casos, e de acordo com a jurisprudência do STF, complementaram, lei posterior em conflito com tratado anterior prevalece sobre esse, enquanto que tratado posterior em conflito com lei anterior prevalece sobre a lei. Estaria aí uma diferença entre o que ocorre no Brasil em relação à Argentina e ao Paraguai, observou Luiz Roberto Barroso.
Luiz Roberto Barroso enfatizou que o artigo 4º, parágrafo único, da Constituição Federal, não é claro, o que criaria dificuldades de legitimação de atos produzidos por uma instituição supranacional. “Estaremos sujeitos, diante da criação de instituição supranacional, a questionamentos relativos a normas aprovadas por essa instituição, pois o artigo 49 da Constituição exige a aprovação pelo Congresso Nacional”, analisou. “É possível uma interpretação construtiva do parágrafo único do artigo 4º para se admitirem instituições supranacionais, porém, é mais prudente a criação efetiva por norma constitucional, com autorização expressa para que se criem essas instituições”, explicou.
Na visão do presidente do STF, ministro Nelson Jobim, a questão da hierarquia dos tratados no Brasil supera o nível jurídico-doutrinário, alcançando o político. Na medida em que os tratados são negociados pelo Executivo e o Congresso Nacional não pode emendá-los, o Legislativo fica excluído da manifestação da vontade internacional do Brasil, afirmou Jobim. “Daí porque o Congresso reage a qualquer tipo de prevalência do tratado à lei ordinária”, comentou. “Se no Brasil não se resolver o problema da relação Executivo-Legislativo na formação da vontade internacional do país, dificilmente o Congresso cederá espaço, porque isso corresponderia a outorgar poderes ao Executivo, independentemente da participação mais substancial do Legislativo”, concluiu.
O presidente da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, Victor Manoel Nuñez Rodriguez, lembrou que, de acordo com a Carta de Ouro Preto, de 10 de setembro de 1996, os Estados-partes do Mercosul deveriam criar instituições supranacionais para a aplicação do Direito Internacional. Ele contou que Paraguai, Argentina e Uruguai propuseram, quando o Mercosul foi criado, a formação de um tribunal supranacional, mas que o Brasil, no entanto, preferia o mecanismo de arbitragem, pois achava prematuro instalar órgão supranacional naquele momento. Nuñez Rodriguez salientou que a Constituição paraguaia, de 1992, consagrou a ordem jurídica supranacional e, portanto, não traz barreiras à aplicação do Direito Comunitário.
Para o presidente da corte suprema do Uruguai, Leslie Van Rompaly, que encerrou o ciclo de palestras da manhã, as assimetrias constitucionais entre os países do Mercosul não são um obstáculo para o processo de integração. Segundo ele, os textos constitucionais demonstram uma situação não muito favorável a uma total integração, mas o problema “pode ser superado por uma interpretação dinâmica do próprio texto constitucional e principalmente através da aplicação da Convenção de Viena sobre o texto dos tratados, seguindo a jurisprudência mais moderna sobre a matéria”, afirmou o magistrado.
SI/EH
2º Encontro de Cortes Supremas do Mercosul (cópia em alta resolução).