Íntegra do discurso do presidente nacional da OAB, Roberto Busato

03/06/2004 18:17 - Atualizado há 12 meses atrás

Quero inicialmente manifestar a honra de representar neste ato solene de posse a advocacia brasileira. É um momento de grande significação para todos os atores da cena político-institucional de nosso país e, em especial, para nós, que atuamos no campo do Direito.


Saúdo, em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, os eminentes ministros Nélson Jobim e Ellen Gracie Northfleet, que se empossam respectivamente nos cargos de Presidente e Vice-Presidente deste Supremo Tribunal Federal.


Na expectativa de convivência profícua e democrática, que tem marcado historicamente nossas relações institucionais, desejo a ambos pleno êxito na missão de presidir a mais alta Corte do Judiciário brasileiro.


Poucas solenidades de posse neste Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, foram precedidas de tamanha expectativa nos meios jurídico e político como esta.


Trata-se de reflexo da circunstância histórica que vive o país, marcada por demanda acentuada de Justiça, em todos os níveis, o que dá realce especial ao papel que este Poder desempenha no conjunto das instituições da República.


Em nenhum outro momento da história, o Judiciário foi tão discutido, questionado, exposto e avaliado pelo cidadão comum como hoje. Foi-se o tempo em que as instituições do Estado se mantinham impermeáveis ao controle da sociedade.


Hoje, felizmente, já não há espaço para torres de marfim na paisagem institucional brasileira. A sociedade é cada vez mais participativa e vigilante.


E é bom que assim seja, pois somente com uma cidadania consciente e politizada o país terá instituições fortes e acreditadas e poderá romper as bitolas do subdesenvolvimento. E esse processo entre nós está apenas se iniciando.


A tendência é a sociedade tornar-se cada vez mais exigente e reivindicativa – e as instituições do Estado precisam aprimorar-se e ajustar-se a esse novo momento.


Por tradição, cabe à Ordem dos Advogados do Brasil, nesta cerimônia, manifestar-se em nome da advocacia e da sociedade civil, perante os três Poderes da República aqui representados. E registro como discreto e significativo sinal de mudança no perfil geopolítico do país o fato de tanto a OAB como os três Poderes terem hoje em seu comando homens nascidos e formados no interior: o Presidente da República, de Garanhuns, Pernambuco; o Presidente do Supremo, de Santa Maria, Rio Grande do Sul; o Presidente do Congresso, de Pinheiro, Maranhão; e o Presidente da Ordem, de Caçador, Santa Catarina, e radicado em Ponta Grossa, Paraná.


Ressalto o forte simbolismo deste ritual, que enfatiza o papel da OAB de porta-voz da cidadania, missão que nos é estabelecida pelo Estatuto da Advocacia, que nos compromete não apenas com as justas demandas corporativas, mas também e sobretudo com a defesa da Constituição e da ordem jurídica do Estado democrático de Direito.


E é no estrito cumprimento desta missão estatutária que nos manifestamos com freqüência a respeito de questões da conjuntura político-institucional brasileira. Tratamos de política sem sectarismo ou partidarismo, na sua essência etimológica, de gestão do bem comum.


Nossa ideologia é a defesa da cidadania e da Constituição. Nessa trincheira sempre estivemos e estaremos, quer enfrentando o autoritarismo, em defesa das liberdades fundamentais, quer pugnando pelo aprimoramento das instituições jurídicas e do Estado, em tempo de democracia.


Senhoras e Senhores,


Não temos a pretensão de agradar ou desagradar.


Não somos governo, nem oposição. Cultuamos a coerência e não temos projeto de poder.
Eventualmente, forças partidárias se identificam com nosso discurso ou dele buscam tirar proveito, quer por convicção, quer por oportunismo.


Mas isso não desvia nosso foco, nem nosso objetivo. Nossa meta é tão-somente a defesa da cidadania e da ordem jurídica do Estado democrático de Direito – e nenhum assunto que envolva essas causas nos é estranho, indiferente ou inoportuno.


E isso nos remete a uma constatação implacável, que tenho feito reiteradamente – e aqui a repito:
O Brasil é um país inconstitucional. Sendo esta Corte a cidadela máxima de defesa da Constituição, cabem aqui o registro e a reflexão em torno dessa afirmação.


Estamos há anos em desacordo com o preceito constitucional expresso nos três primeiros itens do artigo 3° de nossa Carta Magna, que estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil :


“I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;


II – garantir o desenvolvimento nacional;


III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.”


Sabemos que o modelo econômico que aí está, e que remonta a administrações anteriores, não atende a nenhum desses pressupostos. Ao contrário, os afronta, ao acentuar as desigualdades, reduzir a produção e aumentar o desemprego, tornando-nos um dos países mais injustos do Planeta.


E isso é uma aberração não apenas moral, mas também jurídica, à qual espantosamente nos tornamos insensíveis e à qual vimos nos adaptando na seqüência e sucessão das administrações.


Desde a promulgação da Constituição de 1988, a exemplo do que já ocorria em relação à ordem constitucional anterior, cultivamos o estranho hábito de ajustar a nossa Lei Maior aos programas de governo, e não o oposto, como estabelece o juramento constitucional que cada governante presta perante a nação ao ser empossado, razão maior do brutal acúmulo de processos nesta Egrégia Corte.


Resulta disso a síndrome do reformismo que há anos tomou conta do país. Invocam-se os mais diversos argumentos contábeis e financeiros para justificar supressão de direitos (inclusive direitos adquiridos), violação de cláusulas pétreas ou mesmo inconstitucionalidades explícitas.


Os interesses da banca internacional são inquestionáveis, invioláveis, cumpridos algumas vezes com rigor acima do exigido. Devemos ser igualmente exigentes em relação à Constituição – e particularmente aos direitos sociais nela consagrados.


É o caso, por exemplo, do salário mínimo. Há muito que é inconstitucional, já que não preenche os requisitos estabelecidos no item IV, do artigo 7° de nossa Carta Magna.


Diz esse artigo que:


“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:


(…) salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim (…)


Esta é a determinação estabelecida pelo constituinte de 88 e jamais cumprida. O salário mínimo deve prover as “necessidades vitais básicas” do trabalhador e de sua família naqueles quesitos relacionados pelo legislador. E, no entanto, não provê.


É insuficiente até para atender a um só indivíduo (que dirá uma família!) num único quesito que se queira pinçar isoladamente do texto: moradia, alimentação, saúde etc.


O salário mínimo brasileiro – inconstitucional desde sua origem – não atende a quesito algum estabelecido pela Constituição. Ano a ano, o que se tem é o reajuste de uma ilegalidade o reajuste da miséria, sob o mesmo e indefectível argumento: a camisa-de-força do modelo econômico-financeiro.


Mas foi para mudá-lo que o povo se manifestou maciçamente nas eleições passadas, anseio que persiste até hoje e aguarda firmemente o seu momento.


Prezamos o superávit fiscal, mas prezamos mais ainda o superávit social. Constatamos que, enquanto se busca ardorosamente o primeiro, descuida-se (quando não simplesmente se despreza) do segundo. Somos ainda uma nação de excluídos – e nenhum país chega ao Primeiro Mundo com sua população do lado de fora. Esta é uma verdade inapelável e irrecorrível. Ou se ajusta a economia a ela ou continuaremos um país desajustado.


São desafios fundamentais, que têm sido negligenciados por sucessivas administrações. E o resultado está expresso no aumento do desemprego, da violência e da perda de credibilidade por parte das instituições do Estado.


Senhoras e Senhores,


O Judiciário não é peça isolada nesse processo, mas às vezes sua inoperância causa estragos consideráveis. Daí a expectativa com que aguardamos a reforma, ainda que parcial, do Judiciário, em vias de ser aprovada pelo Senado.


Caberá ao presidente Nélson Jobim o desafio de comandar a implantação de uma reforma que tramita há doze anos pelo Congresso, submeteu-se às mais diversas e legítimas pressões, mas está longe de ser a dos nossos sonhos. Mesmo assim, traz algumas mudanças positivas nas relações do Judiciário com a sociedade, tornando-o mais próximo e transparente.


Destaco, como sinal deste novo momento, a adoção do princípio do controle externo, que gerou inicialmente incompreensões, mas que já começa a ser melhor assimilado por setores influentes da magistratura.


Para tanto, contribuiu decisivamente, entre outros, o próprio ministro Nélson Jobim, cuja experiência de homem público, com passagens marcantes pelos três Poderes foi deputado federal, constituinte e ministro da Justiça, deu-lhe o descortino necessário para perceber e sustentar o alcance superior desse princípio.


Não se trata de um instrumento contra o Judiciário, que vise a desmerecê-lo em sua autonomia e independência. Muito pelo contrário, trata-se de instrumento a seu favor, capaz de preservar-lhe a boa imagem institucional. Não abrange, evidentemente, a independência jurisdicional dos juízes esta sim, sagrada, intocável e inegociável.


Trata-se de instituir uma instância supervisora, o Conselho Nacional de Justiça, capaz de controlar atos administrativos e julgar desvios de conduta de membros do Judiciário, que, hoje, nos termos da Constituição, são julgados pelas cortes a que pertencem.


Como se sabe e este é não apenas um fundamento do Direito, mas um axioma da sabedoria popular universal ninguém é bom juiz ou advogado em causa própria. Exatamente porque é a instância que administra e distribui justiça a todos os cidadãos e Poderes da República, possuindo membros vitalícios, é que o Judiciário precisa de alguma forma de controle externo. Esse controle é uma via de mão dupla: garante à sociedade uma Justiça transparente e garante à Justiça a intocabilidade de sua imagem perante o público.


E isso, hoje em dia, é particularmente valioso.


Sem credibilidade, as instituições do Estado enfraquecem e perdem eficácia.


A OAB diverge de alguns pontos da reforma. Opõe-se, por exemplo, à súmula vinculante, por considerá-la inibidora da independência dos juízes de primeira instância, restringindo suas prerrogativas e obrigando-os a homologar cartorialmente sentenças pré-estabelecidas.


Contra ela, continuaremos a nos bater no Congresso Nacional, cenário adequado para dirimir democraticamente conflitos.


O argumento central dos que a defendem é que descongestionará o Judiciário, tornando-o mais ágil. Temos certeza de que não. Para obter esse descongestionamento, mais eficaz seria a racionalização das codificações processuais, dotando-as de instrumentos que permitam a solução de litígios, reduzindo, sem prejuízo da ampla defesa, a possibilidade de eternização das demandas judiciais, mediante recursos sucessivos, que servem apenas para impedir a produção de justiça.


Como a administração pública é a grande responsável pela avalanche de feitos que, por razões várias, ingressam diariamente nos tribunais superiores, medida desobstruidora eficiente é a que venha a tolher a interposição de recursos pela Administração Pública, sempre que estes implicarem rediscussão de tese já sumulada pelo Supremo Tribunal Federal.


Grande parte dos temas inquietantes do cotidiano brasileiro atual violência, drogas, criminalidade urbana, rebeliões penitenciárias, corrupção administrativa, conflitos fundiários tem, entre os fatores que os tensionam, a inoperância do Poder Judiciário. E essa inoperância gera impunidade, que, por sua vez, gera ambiente propício à violência, à corrupção, à criminalidade organizada e à deterioração das instituições.


Quando falamos em reforma do Judiciário, estamos tratando de algo bem mais abrangente que mudanças pontuais no funcionamento operacional de um Poder. Estamos falando do aperfeiçoamento do próprio Estado democrático de Direito.


Para que a democracia ganhe efetivo conteúdo social e deixe de ser letra morta na Constituição, é preciso que a sociedade disponha de um Judiciário eficiente e acessível a todas as camadas da população.


Não é ainda o que temos. O Brasil, como se sabe, é um dos países com maior concentração de renda do mundo. E, desde o advento da chamada globalização econômica, viu seus dramas sociais se agravarem. Um desses dramas, dos mais pungentes, é a crise de justiça, a deficiência da estrutura judiciária e a falta de acesso do povo a seus serviços.


Daí a importância que a OAB há anos atribui à reforma do Poder Judiciário, importância que só recentemente passou a ser compartilhada pelo poder político. Sem Justiça eficiente e acessível (e não a temos), não há democracia digna desse nome.


Credite-se, a propósito, ao atual governo – e o faço aqui na pessoa de seu ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos – o mérito de ter tido essa percepção de urgência e relevância para essa reforma, acelerando sua tramitação no Congresso e permitindo que, enfim, se materialize, ainda que parcialmente.


Outro avanço que merece registro e aplausos diz respeito ao freio de arrumação na farra dos cursos jurídicos de má qualidade, que comprometem estruturalmente a prestação jurisdicional do país.


O ministro da Educação, Tarso Genro, comprometeu-se com a OAB de suspender temporariamente a concessão de registros e estudar a possibilidade de que nossos pareceres técnicos nessa questão sejam vinculantes. É, sem dúvida, um grande avanço.


Os governos anteriores, é forçoso constatar, não tiveram a mesma sensibilidade e empenho nessas duas questões a reforma do Judiciário e o ensino jurídico , não obstante os sistemáticos apelos nesse sentido dirigidos pelos que atuam na cena do Direito e pela sociedade civil organizada.


Lamentamos, apenas, que essa sensibilidade, que louvamos, não se manifeste também em relação a outro tema igualmente fundamental para a criação de um ambiente de segurança jurídica no país. Refiro-me às medidas provisórias, que continuam a ser utilizadas sem observância ao preceito constitucional de urgência e relevância.


Não exagero se disser que hoje nem sequer se sabe que medidas provisórias estão em vigência. O seu uso compulsivo e desregrado, desde sua concepção, em 1988, gerou um ambiente de promiscuidade legislativa, lesivo não apenas à ordem constitucional e moral do país, como também à atração de investimentos econômicos.


Sem segurança jurídica, o que há é o caos e a volatilidade, cujos efeitos políticos, sociais e econômicos são de todos conhecidos.


Desde a posse do atual governo, foram editadas 88 medidas provisórias, o que dá a espantosa média mensal de mais de cinco.


No governo passado, em igual período, essa média ficou acima de seis, embora grande parte delas fosse de reedições, depois proibidas por lei. Por essa razão, a média atual é ainda mais preocupante, pois dela não constam reedições.


Nesse quadro, medida provisória, em temas sem urgência e relevância, é fator de insegurança jurídica.


Reporto-me aqui ao renomado jurista argentino Raúl Zaffaroni, que, em seu livro “Poder Judiciário – Crise, Acertos e Desacertos”, assim avalia as conseqüências de um ambiente de insegurança jurídica:


“A uma menor segurança jurídica corresponde um menor investimento produtivo e um maior investimento especulativo, ou garantias de maiores rendas, compensatórias da insegurança.


Isto não é compensado com mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos quando o seu protagonista pode ser o próprio Estado.”


Portanto, no que diz respeito à atração de investimentos econômicos, o chamado dever de casa – termo tão caro aos nossos tecnocratas – deve incluir prioritariamente o uso restritivo das medidas provisórias. Esse compromisso continuaremos a cobrar deste governo assim como cobramos do governo passado e continuaremos a cobrar de governos futuros, enquanto essa anomalia se mantiver.


Nosso compromisso, repetimos, é com a Constituição e a cidadania e, em sua defesa, não hesitaremos em sustentar posições que eventualmente contrariem a ordem política dominante. Trata-se de atitude coerente com nossa história, de que não abrimos mão nem mesmo nos tempos mais sombrios dos regimes ditatoriais.


Confiando no futuro do Brasil, quero, antes de concluir, reiterar a expectativa da advocacia brasileira de que esta gestão que hoje se inicia, coincidente com as iminentes mudanças trazidas pela reforma do Judiciário, favoreça uma maior valorização das convergências entre os atores da cena judiciária: procuradores, magistrados e advogados.


Historicamente, temos a tendência de valorizar as divergências, deixando de perceber e explorar as amplas convergências já conquistadas. É por meio delas que poderemos construir um ambiente jurídico mais justo e equilibrado para nosso país, nos termos da clássica sentença de São Bernardino de Siena, segundo o qual “a Justiça é a constância de uma perpétua vontade”.


De nossa parte, seremos constantes e determinados na busca desse ideal.


Muito obrigado.  

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