Pleno do STF debate parâmetros de incidência da ADPF
O Plenário do Supremo Tribunal Federal suspendeu todos os processos em curso e os efeitos das decisões judiciais que envolvam a aplicação do artigo 34, do Regulamento de Pessoal do extinto Instituto de Desenvolvimento Econômico Social do estado do Pará (Idesp).
A decisão – que referendou, por unanimidade, despacho do ministro Gilmar Mendes, de 25 de novembro de 2002 – vale até o julgamento de mérito da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 33), apresentada em julho de 2002 pelo governador do Pará, Almir Gabriel, contra o dispositivo do regulamento.
Na ação, o governador argumentou que ao regulamentar a remuneração de pessoal do Instituto, a norma do Idesp vinculou seu quadro de salários ao salário mínimo, em afronta aos preceitos fundamentais relativos ao princípio federativo (artigos 10 e 18, CF) e ao direito social fundamental ao salário mínimo digno (inciso IV do artigo 7º, CF).
Almir Gabriel sustentou, ainda, que o cumprimento de decisões judiciais, com base no artigo 34, do regulamento do Idesp, comprometeria a ordem jurídica lesando a economia estadual, pois ampliaria em 345,35% a folha de pagamentos do estado, resultando em gastos adicionais mensais de R$ 4,3 milhões com a folha de pagamento dos servidores estaduais.
O julgamento sobre a matéria foi concluído (29/10) a partir do voto-vista do ministro Maurício Corrêa, seguindo os votos do relator, Gilmar Mendes, e dos ministros Ellen Gracie e Nelson Jobim. O presidente do STF iniciou seu voto justificando o pedido de vista “por entender da mais alta relevância a fixação, pelo Tribunal, dos parâmetros de incidência da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”. Em seguida, explicou que a ADPF é uma ação que tem por finalidade evitar ou reparar eventual lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público, normativo ou não.
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental decorrente da Constituição Federal está entre ações cuja competência a Carta reserva ao Supremo Tribunal Federal (artigo 102, parágrafo 1º, CF) e seu processo e julgamento pela Corte foram disciplinados pela Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
Ao julgar a ADPF proposta pelo governador do Pará, o ministro Maurício Corrêa acolheu a alegação de que a norma do regulamento de pessoal do Idesp teria violado preceito fundamental referente à autonomia do estado. Ele destacou em seu voto a possibilidade de controle do Direito pré-constitucional. Disse que a jurisprudência do STF, embora ainda não pacificada, já se firmou no sentido de que não cabe Ação Direta de Inconstitucionalidade contra ato normativo anterior à Constituição de 1988.
“Entendeu-se à época que, na hipótese, prevalece a revogação da norma anterior por incompatibilidade, e não conforme sustentado pela corrente contrária, de inconstitucionalidade superveniente. Nesse cenário, a Argüição de Descumprimento é mecanismo hábil e definitivo para solução dos conflitos fundados em controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. Sob esse aspecto, julgo possível o conhecimento da Argüição proposta pelo requerente contra a norma estadual editada em 1996, a qual, segundo posição dominante desta Corte, não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988”, disse Maurício Corrêa.
“Reconhecido o não cabimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade na hipótese, é de se lhe aplicar o princípio da subsidiariedade, condição de procedibilidade que se impõe em face do disposto no artigo 4º, parágrafo 1º, da lei 9.882/99. O Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, não conheceu de Argüições de Descumprimento de Preceito Fundamental, entendendo que havia outros meios processuais aptos a sanar a lesividade dos atos ora impugnados”, destacou ele.
O presidente do STF observou ainda que a mesma Lei 9.882/99, que prevê a possibilidade de concessão de medida liminar na Argüição de Descumprimento, por decisão da maioria absoluta do STF, permite ao relator conceder medida liminar ad referendum do Pleno em virtude de extrema urgência, risco de grave lesão ou no período de recesso.
O ministro destacou que ainda não foi concluído pela Corte o julgamento da ADI 2231, que discute a constitucionalidade da Lei 9.882/99, que trata do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental permanecendo em vigor, portanto, o parágrafo 3º, do artigo 5º, da mesma Lei.
Esse dispositivo estabelece que o Supremo pode, por decisão da maioria absoluta de seus membros, deferir pedido de medida liminar na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. “A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e Tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada”.
CABIMENTO
O relator, ministro Gilmar Mendes, ao proferir seu voto, considerou preliminarmente o cabimento da ADPF para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público (artigo 1º, caput, da Lei 9.882/99). O parágrafo único do mesmo artigo explicita, também, o cabimento da ADPF quando houver relevância no fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição (leis pré-constitucionais). Assim, a Argüição poderá ser manejada para solucionar controvérsias sobre a constitucionalidade do Direito federal, do Direito estadual e também do Direito municipal.
Para o ministro, a Argüição de Descumprimento completa o sistema de controle de constitucionalidade concentrado no STF, pois as questões até então não apreciadas no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade – Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) – poderão ser objeto de exame no âmbito do novo procedimento.
Quanto ao parâmetro de controle de constitucionalidade, Mendes observou a dificuldade em indicar os princípios fundamentais da Constituição que poderiam ser lesionados de forma grave, a ensejar o processo e o julgamento da Argüição de Descumprimento. “Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional”, ponderou. Do mesmo modo, Mendes observou que não poderia deixar de atribuir a qualificação de preceitos fundamentais aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do artigo 60, parágrafo 4º, da CF (forma federativa de Estado, separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico).
A matéria tratada pela ADPF versa sobre a autonomia do Estado, base do princípio federativo amparado pela Constituição, inclusive como cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4º, inciso I). O ministro ressaltou que na forma da jurisprudência do STF, se a majoração da despesa pública estadual ou municipal, com a retribuição dos seus servidores, for submetida a procedimentos, índices ou atos administrativos de natureza federal, a ofensa à autonomia do ente federado está configurada, e citou os precedentes do ministro Moreira Alves, no Recurso Extraordinário 145.018, do ministro Nery da Silveira, na Representação 1426.
O ministro lembrou a admissão inicial, pelo STF, da possibilidade de examinar, no processo do controle abstrato de normas, a questão da derrogação do Direito pré-constitucional, em virtude de colisão entre a Constituição superveniente e o Direito pré-constitucional. Nesse caso, julgava a improcedência da representação, mas reconhecia expressamente a existência da incompatibilidade entre o Direito ordinário pré-constitucional e a nova Constituição.
Porém, tal posição teria sido abandonada em favor do entendimento segundo o qual o processo do controle abstrato de normas destina-se a conferir a constitucionalidade de normas pós-constitucionais. Assim, eventual colisão entre o Direito pré-constitucional e a nova Constituição seria solucionada segundo os princípios de Direito intertemporal. Caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao STF, examinar a vigência do Direito pré-constitucional no âmbito do controle incidente de normas, uma vez que, nesse caso, cuidar-se-ia de simples aplicação do princípio lex posterior derogat priori (lei posterior revoga a anterior), e não de um exame de constitucionalidade.
O ministro ressaltou que a Constituição de 1988 não tratou expressamente da questão relativa à constitucionalidade do Direito pré-constitucional, e que a jurisprudência do STF, desenvolvida sob a vigência da Constituição de 1967/1969, tratava dessa colisão com base no princípio lex posterior derogat priori.
Na vigência da CF/88, o Tribunal, ao discutir o tema na ADI nº 2, entendeu que há superioridade da lei constitucional em relação às demais leis, por indicar os Poderes do Estado através dos quais a nação se governa, além de marcar e delimitar as atribuições de cada um deles.
Uma última observação do ministro sobre o tema seria extraída das regras disciplinadoras do Recurso Extraordinário (RE) no Direito Brasileiro. Nos termos do artigo 102, inciso III, alíneas “a”, “b” e “c”, da Constituição, o RE somente poderá ser admitido quando a decisão recorrida contrarie dispositivo da Constituição, declare a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, ou, por fim, julgue válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
O ministro observou que o constituinte não concebeu contrariedade a esta Constituição, em qualquer de suas formas, inclusive no que concerne à aplicação de leis pré-constitucionais, como simples questão de Direito intertemporal, pois do contrário o RE poderia ser desprezado. É que afirmar a validade de lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição não traduziria juízo de compatibilidade entre o Direito ordinário e a Constituição, considerando o postulado da lex posterior.
Essa conclusão resulta ainda mais evidente da cláusula contida no art. 102, III, “b”, da Constituição, que admite o Recurso Extraordinário contra decisão que declarar a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal. Significa dizer que qualquer juízo sobre a incompatibilidade entre a lei federal ou o tratado pré-constitucional e a Constituição atual, levado a efeito pela instância a quo, é valorado pela Constituição como declaração de inconstitucionalidade, dando ensejo, por isso, ao Recurso Extraordinário.
“Tais reflexões permitem afirmar que, para os fins de controle de constitucionalidade incidenter tantum no âmbito do Recurso Extraordinário, não assume qualquer relevância o momento da edição da lei, configurando eventual contrariedade à Constituição atual questão de constitucionalidade, e não de mero conflito de normas a se resolver com aplicação do princípio da lex posterior”, afirmou Mendes.
Observados tais argumentos e considerando a razoabilidade e o significado para a segurança jurídica da tese que recomenda a extensão do controle abstrato de normas também ao Direito pré-constitucional, para Mendes, não seria despropositado cogitar da revisão da jurisprudência do STF sobre a matéria.
Com a aprovação da Lei nº 9.882/99, que disciplina a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e estabelece, expressamente, a possibilidade de exame da compatibilidade do Direito pré-constitucional com norma da Constituição Federal, todas as vezes que ocorrer controvérsia sobre a legitimidade do Direito federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição de 1988, em face de seus preceitos fundamentais, poderá qualquer dos legitimados para a propositura de ADI propor ADPF.
Também tal solução preencheria lacuna existente no sistema constitucional brasileiro de controle de constitucionalidade, permitindo que controvérsias afetas ao Direito pré-constitucional encontrem solução pelo STF com eficácia geral e efeito vinculante.
No caso presente, ADPF 33 trata de norma de Direito estadual editada em 1986, portanto, anterior à CF/88, e que teria incompatibilidade com a Carta Magna em decorrência da vedação constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (artigo 7o, IV, CF), o que afronta ao princípio federativo.
A cláusula da subsidiariedade contida no artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei nº 9.882/99, solucionaria a controvérsia em torno da aplicação do princípio do exaurimento das instâncias. Em primeiro momento, supõe-se que somente na hipótese da inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão a princípio constitucional poderia ajuizar a ADPF. “É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no Direito alemão (recurso constitucional) e no Direito espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático”, afirmou Mendes.
Para o relator, de uma perspectiva subjetiva a ADPF somente poderia ser proposta caso tivessem sido verificados todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Porém, na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental, nesse processo deveria predominar um enfoque objetivo, ou seja, o princípio da subsidiariedade deveria ser compreendido no contexto da ordem constitucional global, como meio eficaz de sanar a suposta lesão à Constituição.
O ministro ressaltou que na impossibilidade de uso da ADI e da ADC para solucionar controvérsia constitucional, deveria ser utilizada a ADPF. Nos casos de controle de legitimidade do Direito pré-constitucional, do Direito municipal, em face da Constituição Federal, e nas controvérsias sobre Direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos encontram-se exauridos, deveria ser reconhecida a admissibilidade da Argüição de Descumprimento.
A própria aplicação do princípio da subsidiariedade indicaria que a ADPF deve ser aceita nos casos envolvendo a aplicação direta da Constituição, que não envolvam a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional. Do mesmo modo, as controvérsias concretas com base na eventual inconstitucionalidade de lei ou ato normativo poderiam ensejar muitas demandas, insolúveis no âmbito dos processos objetivos. E não poderia ser admissível que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários excluam a utilização da ADPF, mesmo porque o instituto assume no Direito Brasileiro feição objetiva.
O ministro relator considerou o perfil objetivo da Argüição de Descumprimento, com legitimação diversa, para vislumbrar uma autêntica relação de subsidiariedade entre o novo instituto e as formas tradicionais de controle de constitucionalidade do sistema difuso, expressas no uso do RE.
“Assim, o Tribunal poderá conhecer da Argüição de Descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional”, argumentou o ministro.
Nesta ADPF, o dispositivo impugnado, ao indexar o salário dos cargos estaduais ao salário mínimo como fator de reajuste automático da remuneração dos servidores da autarquia estadual extinta e, para todos os fins, sucedida pelo Estado do Pará, retirou do Estado a autonomia para decidir sobre o reajuste de seus servidores, matéria de seu interesse.
O ministro relator ponderou que dentro da possibilidade de decretar a suspensão direta do ato impugnado na ADPF, admite-se a determinação de que os juízes e Tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer outra medida que guarde relação com a matéria discutida na ação (artigo 5º, parágrafo 3º, da Lei 9.882/99). Nesse aspecto, a cautelar da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental assemelha-se à medida liminar na ADC. Assim, a liminar serviria, também, como instrumento de economia processual e de uniformização jurisprudencial.
Para o relator, é possível que a concretização de todas as decisões judiciais que buscam a aplicação do dispositivo questionado (artigo 34 do Regulamento do Idesp) possa comprometer as finanças do estado (sucessor da Autarquia), além de acarretar dificuldades para o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal que fixa limite máximo de comprometimento do Executivo nos gastos com pessoal. Por isso concedeu a liminar, determinando a suspensão de todos os processos em curso e dos efeitos de decisões judiciais que versem sobre a aplicação do dispositivo ora questionado até o julgamento final desta ADPF.
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