Artigo do presidente do STF, ministro Marco Aurélio

01/06/2001 16:30 - Atualizado há 8 meses atrás

O jornal Folha de S. Paulo publicou hoje (01/06) artigo do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio, intitulado “Menos leis, mais compostura”, onde ele afirma que os juízes estão vivendo um constante conflito no empenho de conciliar celeridade, eficiência e consistência jurídica nas decisões que proferem.


O ministro Marco Aurélio considera também serem dispensáveis outras leis.  “Ao contrário, imprescindíveis são homens que as cumpram, dirigentes que exerçam seus ofícios convictos de que o cidadão comum elege como parâmetro a conduta das autoridades legitimamente constituídas”.


Eis a íntegra do artigo:


“Diante dos acontecimentos que recentemente permearam a agenda política nacional, tornou-se corriqueiro o comentário de que o Estado está em crise. Essa conclusão se mostra parcial e pessimista, porquanto superdimensiona os aspectos negativos, quando, na realidade, deveria sobressair o pleno funcionamento das instituições, aí incluindo o elevado nível de uma mídia independente e extremamente vigilante, sem dúvida nenhuma requisito e consequência, a um só tempo, do Estado democrático de Direito.


A população, outrora inerte por ignorância ou muitas vezes por conveniência, hoje se sente segura para reagir às distorções notadas nos diversos segmentos da vida pública e se manifesta de forma razoavelmente amadurecida. O cidadão brasileiro, mais consciente, não só observa os fatos, ainda que à distância, mas opina e pressiona, sobretudo porque os meios de comunicação aproximaram a elite dirigente dos eleitores. E o veredicto vem de forma clara, rápida, mostrando-se cada vez mais rigoroso frente às eventuais fragilidades e deficiências na estrutura do Estado.


No Brasil de hoje, não há mais como desprezar a força dos grupos de pressão, resultado da crescente organização social e do avanço tecnológico, já que é inegável o papel da internet na arregimentação e na divulgação do pensamento da camada formadora de opinião. Um número cada vez maior de diligentes cidadãos acompanha de perto a atuação dos três Poderes da República, que, a passos largos, ajustam-se ao austero figurino de moralidade e ética exigido pela nação, recaindo sobre o Judiciário a cobrança que soa como das mais impacientes, pela antiguidade das reclamações, direcionadas, na grande maioria das vezes, à conhecida morosidade na tramitação dos feitos. Em respeito aos cidadãos brasileiros, partícipes da administração do Estado, cumpre analisar, com absoluta honestidade de propósito, as causas que inviabilizam o desfecho de uma ação em tempo razoável, sem abandonar a segurança jurídica, tão cara em uma sociedade que se almeja democrática.


Não cabe aqui, de forma nenhuma, a defesa da magistratura. Os juízes estão no limiar de seus esforços, procurando dar o melhor de si como servidores da sociedade; desdobram-se na tentativa de bem aproveitar todo o tempo disponível, vivendo um constante conflito no desmedido empenho de conciliar celeridade, eficiência e consistência jurídica nas decisões que proferem.


Descartada a responsabilidade dos magistrados nesse quadro caótico, o cerne do problema parece estar na desarrazoada avalancha de processos que inundou o Judiciário nas últimas décadas, circunstância a que se soma o descompasso entre o número de habitantes e de órgãos investidos no ofício de julgar.


Qual a origem de tantos processos?


Bem, não é coincidência o fato de que exatamente nesse mesmo período diversas foram as tentativas dos governantes para afastar o fator responsável pelo maior desgaste político da época: a escalada inflacionária. Respondia-se, a cada insucesso, com outro pacote de medidas miraculosas. Contam-se facilmente mais de uma dúzia de planos econômicos anunciados com grande pompa, produtos de conceitos e teorias de forte apelo tecnocrático e sem quase nenhuma orientação jurídica -os profissionais do direito pouca participação tiveram e, quando assim não ocorreu, abandonaram a independência técnica, predicado inerente à atuação, buscando, de forma imprópria, o êxito da política em curso, e não a preservação da coisa pública.


O fim passou a justificar os meios, atropelando comezinhas noções, a exemplo do que ocorreu em relação a situações devidamente constituídas, os chamados direitos adquiridos. E como, para usar uma pilhéria popular, a parte mais sensível do ser humano é o bolso, foram os tribunais que arcaram com os custos de tanto desatino, encontrando cortes judiciais do país, mesmo após transcorridos muitos anos, às voltas com os incêndios provocados por tais malfadados planos.


Um exemplo esclarecedor deu-se há pouco: o Supremo Tribunal Federal enfim dirimiu de maneira definitiva as controvérsias relativas à correção dos saldos das contas do FGTS advindas das estrambólicas medidas engendradas por equipes econômicas de plantão. Perderam-se de vista quantos processos passaram pelo Supremo sobre a questão, obstruindo a pauta de julgamento para aqueles casos de envergadura mais compatível com a Suprema Corte.


Parece razoável, portanto, concluir que, diante da estabilidade da moeda, domado o monstrengo inflacionário e com o Plano Real vigente já por algum tempo, a tendência seria a diminuição do número de processos. Não obstante a instabilidade monetária foi substituída por outra mais perniciosa: a normativa. E com um agravante: a proliferação de diplomas legais decorre do uso abusivo de instrumental que tem força de lei, a medida provisória. Abusivo até porque à margem do texto da Carta Federal, ainda que tenha sido das mais claras a linguagem usada pelo constituinte.


Ora, se diante de ordenamento jurídico estável pairam dúvidas na interpretação de preceitos -sempre um ato de vontade-, pode-se imaginar o que advém da edição sem limites de medidas provisórias, de modo a transformar o excepcional em corriqueiro, desatendendo, até mesmo, a delimitação constitucional relativa à área de atuação de cada Poder.


É tempo de acurar o olhar para a necessidade de os membros dos três Poderes mostrarem-se como verdadeiros artífices na tarefa precípua de transformar a Constituição em corpo vivo. E, para tanto, são dispensáveis outras leis; ao contrário, imprescindíveis são homens que as cumpram, dirigentes que exerçam seus ofícios convictos de que o cidadão comum elege como parâmetro a conduta das autoridades legitimamente constituídas. Que a salutar mudança esperada pelos brasileiros inicie-se com uma nova atitude do Estado que tudo pode -legisla, executa as leis e julga a aplicação destas. Que o faça homenageando e, mais do que isso, respeitando a supremacia da Constituição que a todos, sem exceção, submete. No dia em que isso acontecer, a palavra “crise” desaparecerá dos comentários rotineiros ouvidos em cada esquina”.

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