Marco Aurélio ressalta que Judiciário não é um mero aplicador de lei

31/05/2001 18:00 - Atualizado há 8 meses atrás

Ao assumir hoje (31/05) a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Marco Aurélio ressaltou que o Poder Judiciário não é um mero aplicador de lei, “pois deve, acima de tudo, indicar e consagrar o que é justo”.


Ele lamentou, em seu discurso, o fato de que apenas a minoria dos brasileiros tem acesso à Justiça.  “A ninguém se permite ignorar que, princípio básico elementar, sem o qual não sobrevive a mais incipiente democracia, a Justiça deve ser acessível a todos.  Mais do que isso: a garantia de acesso e de exercício de direitos é responsabilidade também do Executivo e do Legislativo”.


O ministro Marco Aurélio encerrou o seu discurso prometendo lutar pela unidade do Judiciário.  Eis a íntegra do seu discurso:  


“Senhores,



A nova organização mundial das relações humanas exige do Poder Judiciário brasileiro o redimensionamento de seu próprio papel, compreendendo-se e, mais do que isso, comprometendo-se definitivamente como responsável por prestação jurisdicional mais ampla e eficiente, mais afinada com uma realidade afeita a vertiginosas, surpreendentes e constantes mudanças. Já muito distante está a época em que incumbia precipuamente ao Judiciário dirimir conflitos de interesses individuais, em relações típicas de direito civil. Num primeiro instante de transformações econômicas radicais, a sociedade brasileira, mormente a comunidade jurídica, reivindicou e conseguiu consolidar e efetivamente fazer valer os direitos sociais. Enorme foi, então, o avanço promovido pela criação da Justiça do Trabalho, da qual sou egresso e de onde provém toda a minha formação humanística e profissional. A repercussão desse fato foi sentida em todas as camadas da população, principalmente nas mais desprotegidas. Uma nova organização social foi aos poucos se delineando, até se impor, definitivamente.


Pois bem, no alvissareiro início do terceiro milênio, já passa da hora de enxergar que modificações se afiguram indispensáveis para que o Poder Judiciário cumpra o papel constitucional que lhe foi destinado: é tempo de acurar-se o olhar para a necessidade de a Justiça no Brasil ultrapassar uma nova fronteira, desta vez voltada à preservação das garantias dos direitos humanos, aqui considerados em significado mais amplo, a contemplar direitos coletivos, dos povos, da humanidade. Numa época em que o tecnicismo exacerbado, a quase obsessiva especialização das ciências, a danosa impessoalidade das relações econômicas contemporâneas promovem desvirtuamento ímpar de valores, convém a toda a sociedade, sobretudo aos magistrados, restabelecer o enfoque no ser humano. Por dever de ofício, cabe a nós, magistrados e operadores do Direito, não medir esforços para colocar o homem como cerne, princípio e finalidade última de todas as ações, e não o progresso vazio dos modelos econômicos importados, não a produtividade cada vez maior, a transformar trabalhadores em máquinas robotizadas, não os contratos tecnocratas, não os interesses corporativos, não a letra inerte de legislações muitas vezes obsoletas. Não, de forma alguma. A ninguém mais escapa que o Poder Judiciário não é um mero aplicador de lei, pois deve, acima de tudo, indicar e consagrar o que é justo.


E não é justa a opressão do homem pelo homem. Até aqui, a festejada evolução tecnológica não serviu para beneficiar a maioria. No Brasil, país que lamentavelmente disputa as primeiras colocações no rol dos grandes concentradores de riqueza, os abismos sociais aprofundam-se dia após dia. As garantias constitucionais a poucos alcançam – é ínfima a porcentagem dos brasileiros que tem acesso ao Judiciário. Não obstante, a esta altura, a ninguém se permite ignorar que, princípio básico elementar, sem o qual não sobrevive a mais incipiente democracia, a Justiça deve ser acessível a todos. Mais do que isso: a garantia de acesso e de exercício de direitos é responsabilidade também do Executivo e do Legislativo. É tempo, assim, de contar-se com o Estado suficientemente estruturado e aparelhado para tanto; é tempo de proporcionar-se, aos menos afortunados, de maneira iniludivelmente eficaz, a assistência jurídica integral e gratuita; é tempo de a população já poder dispor dos essenciais serviços da Defensoria Pública, nos Estados e no âmbito da União, em moldes satisfatórios; é tempo, alfim, de as garantias constitucionais saírem do papel, revelando-se como instrumentos concretos e ao alcance de todo e qualquer cidadão. Ao Poder Judiciário cumpre, por sua vez, ao interpretar a lei, ato de vontade, assumir a cota de responsabilidade que lhe cabe na promoção da cidadania e da justiça social.


As distorções que ora atingem o Poder Judiciário resultaram de antigos e conhecidos equívocos diuturnamente retroalimentados. Um deles, a instabilidade normativa, desaguou numa avalancha de processos, circunstância que acabou por distraí-lo do papel ativo que lhe compete na imprescindível preservação dos direitos humanos. É inegável que a profusão de processos amesquinhou o papel do Supremo Tribunal Federal, que não pode ficar reduzido à simples condição de quarta instância deliberativa. Urge que a atribuição constitucional a si destinada desde os primórdios da República seja melhor aquilatada, em benefício do aprimoramento da prestação jurisdicional. A função da Suprema Corte não é julgar, caso a caso, milhares de demandas idênticas, repetidas, como que a prestigiar, com sua intervenção, o que foi decidido nas outras importantes instâncias judiciais. O juiz de primeiro grau e o órgão revisor competente hão de ter sua jurisdição valorizada e fortalecida. A atuação dos tribunais superiores deve ser reconhecida pela envergadura da causa, afastando-se a automaticidade na interposição do recurso. Cabe ao Supremo o papel de Corte constitucional, afirmadora de valores essenciais, inafastáveis, a serem reverberados por todo o Judiciário de maneira sintonizada com o tempo, com as necessidades da população, com o reequilíbrio das posições, de forma a fazer justiça social, sem a qual não há Justiça nem, portanto, Estado Democrático de Direito pleno.


Eis um aspecto em que se esbarra sempre na velha e repisada questão, entrave que aborrece só à simples lembrança Rui afirmava que Justiça morosa não é Justiça. De fato, é lastimável que a lentidão da Justiça brasileira sirva até mesmo de trampolim para o escárnio de autoridades constituídas, circunstância que desgasta sobremaneira o Judiciário e enfraquece todas as instituições. O socorro à Justiça é possibilidade que muitas vezes soa para o cidadão comum como ameaça de não-solução de conflitos, um caminho para não prevalecer o direito, quando deveria ser precisamente o contrário. E, nesse ponto, a postura adotada pelo Estado é de molde a delimitar o cerne da questão. Infelizmente, nas últimas décadas, o Estado brasileiro, ao invés de voltar-se ao atendimento dos interesses primários coletivos, menospreza-os, resultando dessa inadmissível atitude a constatação de que hoje figura, como parte passiva, em número desmedido de processos, o que vem a ser flagrante contra-senso, porquanto o Estado existe para viabilizar a almejada segurança jurídica, o bem-estar geral. E já que o Estado tudo pode – legisla, executa as leis e julga as controvérsias surgidas das múltiplas relações jurídicas -, que o faça bem; que atue com os olhos voltados à certeza de que o cidadão comum tem como parâmetro a conduta das autoridades legitimamente constituídas. As estatísticas bem demonstram o esquecimento dessas premissas, no que revelam, por exemplo, a inusitada tramitação, nesta Corte, ante o descumprimento contumaz de sentenças judiciais, de cerca de três mil processos que envolvem pedidos de intervenção nos Estados-membros, dos quais aproximadamente dois mil concernem ao maior deles, São Paulo, sem falar-se naqueles ligados ao inadimplemento dos Municípios, porque da competência originária dos Tribunais de Justiça. Enquanto isso, proliferam os instrumentos normativos, como se o formal servisse ao conserto das mais caóticas situações, como se no Brasil precisássemos de mais e mais leis, e não de uma mudança cultural, de homens de boa vontade, especialmente dirigentes cumpridores das normas vigentes. Em síntese, numa visão panorâmica, percebe-se facilmente o Estado brasileiro, de um lado, como legislador excessivo que não raras vezes ignora o método e a oportunidade, e, na outra ponta, como agente público que nem sempre prima pelo rigoroso respeito à legislação em vigor. No meio deste emaranhado de funções mal interpretadas ou mal compreendidas, vê-se o Judiciário, hoje completamente engessado tanto pela inoperância de um sistema processual falido, como pela deficiência de recursos humanos, sobressaindo o reduzidíssimo número de juízes em atividade.


Diversas soluções já foram aventadas por destacados juristas e laboriosos legisladores para reverter tão embaraçoso quadro. Fala-se, por exemplo, na reforma do Judiciário, na institucionalização da arbitragem, na súmula vinculante, ferramenta incompatível com a espontaneidade inerente ao ofício judicante, que, definitivamente, longe está de ser mera tarefa burocrática, como que reduzida à simples aposição mecânica de carimbos oficiais, nos quais se converterão, sem nenhuma dúvida, esses verbetes de nome pomposo. Há também os que apontam para a valorização de ações coletivas como forma de racionalização dos trabalhos jurisdicionais e proteção de interesses que se irradiam e que, individualmente, encontram dificuldades para se tornarem prevalecentes. Tais ações, à luz muitas vezes de interpretação excessivamente formalista, acabam não se confirmando como instrumentos à disposição para fazer valer direitos já consolidados, fenômeno que repercute em preocupante perda de balizas e, conseqüentemente, em crescente desrespeito a princípios básicos norteadores de uma sociedade que se almeja democrática. Todos parecem concordar, porém, que é preciso diminuir o extenso rol dos recursos ora existente, homenageando-se o princípio da razoabilidade, a direcionar à presunção não do desacerto da decisão proferida, mas da plena harmonia com o direito posto; todos admitem que é necessário alterar normas processuais em vigor para simplificar os ritos hoje observados, desburocratizando o processo e fechando a porta àqueles que, de maneira distorcida e pouquíssimo ética, apostam na morosidade da Justiça, na postergação do desfecho das lides. Há de buscar-se a conciliação dos valores “justiça” e “segurança jurídica”, sem prejuízo, é certo, para o exercício do direito de defesa. Todavia, a julgar pela rotina em que se tornou o ato de recorrer a uma instância superior, as garantias processuais parecem sobrepor-se às de direito material. Não há mais como observar passivamente que a ineficiência na prestação jurisdicional venha a afastar a confiança no Judiciário, derradeira trincheira da própria democracia.


Cumpre ao Supremo Tribunal Federal discernir sobre o modo de aprimorar a forma de acesso de todos à prestação jurisdicional. Entretanto, para afastar definitivamente essas antigas mazelas, esse despropositado estorvo, a repercutir no desvirtuamento das atividades precípuas de cada Poder da República, é imprescindível, antes de tudo, que a sociedade brasileira mobilize-se junto com o Poder Judiciário para refletir sobre a maneira de resolver o problema com os instrumentos disponíveis, sem acenar-se com modificação que, a depender de tantas condicionantes, não se torne factível a curto prazo.


Nesse ponto, convém estimular a mudança de atitude do Poder Judiciário que, em paralelo com a organização da sociedade civil, deve compreender a democracia participativa como o melhor e mais adequado meio para a definição de novas diretrizes. Impõe-se a reorientação do Judiciário nacional, para exercer ativamente atribuições que possibilitem a realização do objetivo principal e último: a concretização inquestionável, e não apenas teórica, virtual, da garantia de acesso a Justiça a todos, indistinta e eficazmente, sem o que qualquer democracia não passa de caricato arremedo ou mera utopia.


Senhores, para quem esperava um discurso de posse, lanço aqui um manifesto de mobilização dos operadores do direito e de todo o corpo social, em favor da alteração de mentalidade do Poder Judiciário e da própria comunidade jurídica, para que participem conosco ativamente da reflexão sobre a urgência desta tarefa, sobre o modo como poderá ser realizada, bem como os valores nos quais se assentará. Cada um há de agir no âmbito do próprio mister: as faculdades de direito, na pesquisa e definição teórica, no ensino da ética e da filosofia que deverão nortear, agora e no futuro, a aplicação do direito em novos tempos, para tanto contando com o entusiasmo, o idealismo e o labor incessante dos doutrinadores, verdadeiros artífices do conhecimento como condição intrínseca do progresso e, assim, do bem-estar geral; o combativo Ministério Público e a Defensoria Pública, na proteção da sociedade e dos hipossuficientes; a Ordem dos Advogados, na definição de causas em que possível incluir pleitos ainda inéditos no Judiciário; os juízes, materializando o ideal de Justiça e, desse modo, honrando a missão sagrada de julgar os conflitos de interesses postos ao seu discernimento, sem cuidados outros com ideologias de ocasião ou eventuais repercussões neste ou naquele segmento social, mas tendo em vista sobretudo o ministério que elegeu: dar a cada qual o que de direito.


Estejam certos os senhores dos desmedidos esforços da Presidência do Supremo Tribunal Federal no sentido, desde já, da unidade cada vez maior do Judiciário, predicado indispensável à definitiva afirmação deste Poder como aquele que, a partir de nossa Lei Maior, a todos submete, a fim de bem desincumbir-se da precípua função constitucional a si reservada: a preservação inconteste da segurança na vida gregária. A política do Judiciário foge ao sectarismo; a política do Judiciário há de ser, sempre e sempre, institucional, voltada aos interesses maiores do povo brasileiro.


Agradeço, em meu nome e no do Vice-Presidente – Ministro Ilmar Galvão –, as palavras estimulantes dos oradores desta tarde – do Ministro Celso de Mello, que buscou exprimir o sentimento da Corte; do Procurador-Geral da República, Professor Geraldo Brindeiro, e do Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Rubens Approbato Machado, expressões vivas da magistratura, do Ministério Público e dos advogados. Agradeço, na pessoa do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Professor Fernando Henrique Cardoso, a presença de todos que aqui estão, reafirmando, uma vez mais, a crença inabalável na supremacia da Constituição Federal. Muito obrigado.”


 

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