STF determina arquivamento de Petição na qual Roseana Sarney era acusada por crimes no projeto Usimar

01/08/2003 20:49 - Atualizado há 9 meses atrás

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, determinou o arquivamento da Petição (Pet 2952) ajuizada contra a ex-governadora do Maranhão e atual senadora, Roseana Sarney (PFL-MA). No processo Roseana era acusada pela suposta prática dos crimes de formação de quadrilha, estelionato, falsidade ideológica e peculato por meio do empreendimento empresarial Usimar Componentes Automotivos. Os outros envolvidos seriam seu marido Jorge Murad e o deputado federal Jader Barbalho.

O relator do pedido, ministro Gilmar Mendes, entendeu que a denúncia do Ministério Público Federal não oferecia elementos objetivos que demonstrassem a ligação entre a atuação de Roseana Sarney e os alegados fatos criminosos.


“Tal como anota o magistrado de primeira instância, a mera participação na reunião que resultou em aprovação do Projeto Usimar não constitui elemento suficiente para se concluir que há indício de conduta criminosa imputável à denunciada. E também não há provas de ter a denunciada se beneficiado, direta ou indiretamente, dos recursos públicos liberados no projeto USIMAR”, disse Mendes.

Segundo o ministro, esta deficiência foi apontada no despacho do juiz federal de 1ª, da Seção Judiciária de Tocantins, que rejeitou a denúncia, e “não foi suprida 
 nas razões do recurso em sentido estrito. Ao contrário, limita-se a peça recursal a uma série de conjecturas despidas de qualquer substrato probatório”.



“Cabe asseverar, por oportuno, que a admissão de processos criminais sem qualquer indício de autoria representa inaceitável ofensa ao princípio da dignidade humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe a um indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais, que não devem estar calcadas em conjecturas”, concluiu.


Histórico


O Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região havia encaminhado ao STF, em 27 de maio deste ano, o Recurso em Sentido Estrito proposto pelo Ministério Público Federal contra a senadora Roseana Sarney (PFL/MA). Ela respondia a um processo em que era acusada pela suposta prática dos crimes de formação de quadrilha, estelionato, falsidade ideológica e peculato por meio do empreendimento empresarial Usimar Componentes Automotivos.


 


O juiz federal de primeira instância, da Seção Judiciária de Tocantins, não admitiu a acusação contra Roseana porque a promotoria não teria demonstrado que ela agiu com intenção de colaborar com as demais pessoas denunciadas no desvio de recursos públicos.


 


Também não teria sido provado em que medida a parlamentar teria contribuído para as fraudes contra o Fundo de Investimento da Amazônia (Finam), administrado pela Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia).


 


Nas razões do Recurso, o Ministério Público descreve o funcionamento da organização criminosa supostamente comandada por Roseana, Murad e Jader, que teriam se juntado para desviar recursos públicos da Sudam. Segundo afirma, a organização seria formada por várias pessoas divididas em núcleos encarregados de propósitos diferentes.


 


A Usimar teria sido criada com o objetivo de obter ilicitamente os recursos da Finam. Segundo informações do Ministério Público, o esboço do projeto foi orçado em R$ 1 bilhão e 800 milhões, e o projeto teria contado com o apoio de Roseana Sarney, à época governadora, e Jorge Murad.


 


O Ministério Público alega que a participação de Roseana foi fundamental para que o projeto Usimar tivesse êxito. Ela teria sido a responsável pela transferência ilegal de um terreno sem o qual o empreendimento não teria obtido a aprovação da Sudam. Havia a exigência de uma certidão de registro de imóveis comprovando que a empresa tinha a propriedade da área destinada à implantação do projeto.


 


Tendo isso em vista, Roseana Sarney teria então assinado o decreto de desapropriação de uma área em São Luís (MA), cujo domínio útil pertenceria à Estral Escavações e Transportes Ltda. Entretanto, o Ministério Público afirma que segundo a cadeia dominial do imóvel, ele pertenceria na verdade à União Federal, e o domínio útil estava cedido ao estado do Maranhão. Como já era um terreno público, não poderia ser desapropriado. Não obstante, a então governadora teria providenciado a transferência do imóvel à Usimar.


 


Ao final, o Ministério Público lembra o episódio do dinheiro de origem, segundo o MP, não comprovada, no valor de R$ 1.340.000,00, encontrado na empresa Lunus, de propriedade de Roseana e Murad. Tudo isso, afirma, levaria à conclusão de que o casal teria mais que interesse político no projeto Usimar.


 


Leia abaixo a íntegra da decisão do ministro Gilmar Mendes. 


 


#AMG/SS//AM


 


 


PETIÇÃO 2.952-6 TOCANTINS


 


RELATOR : MIN. GILMAR MENDES


REQUERENTE(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


REQUERIDO(A/S) : ROSEANA SARNEY MURAD


 


                   DECISÃO: O parecer do Ministério Público Federal, da lavra do então Vice-Procurador-Geral da República, o ilustre Dr. Haroldo Ferraz da Nóbrega, assim relata o presente feito, verbis:


 


Inconformado com o respeitável despacho do Magistrado Dr. Alderico Rocha Santos (fls. 965/83), na parte em que rejeitou a denúncia oferecida contra Roseana Sarney Murad (fls. 978/81), interpôs o Ministério Público Federal, junto à Justiça Federal, em Tocantins, recurso em sentido estrito.


A petição de recurso em sentido estrito é vista às fls. 03 e as respectivas razões estão inseridas às fls. 06/31, tendo sido mantida a decisão recorrida, no prazo de retratação (fls. 04).


Remetido o instrumento ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, emitiu pronunciamento, perante o mesmo Tribunal, como Representante do Ministério Público Federal, o Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, que pugnou pela remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, nos termos seguintes:


(OMISSIS)


Referido ponto de vista foi acolhido pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, através de acórdão assim ementado:


(OMISSIS)”


 


                        No referido parecer, opina o Ministério Público pelo indeferimento do recurso, verbis:


 


Entendo que o recurso não merece provimento. A decisão recorrida (fls. 987/81) destacou todos os elementos relevantes à solução da controvérsia e, brevitatis causa, peço vênia para remeter a Vossa Excelência à leitura do que ali consta.


As razões recursais (fls. 6/31), com a devida vênia, não conseguem infirmar o despacho recorrido. Não há prova de que a Senadora tenha conscientemente se inserido numa cadeia causal criminosa, cujo escopo fosse a apropriação de recursos públicos. A acusação não consegue demonstrar que a Senadora tenha se beneficiado com o recebimento de recursos públicos desviados.  Sugere que o numerário apreendido na empresa Lunus constituiria indício de locupletamento da Senadora à custa dos recursos públicos liberados e desviados. Neste ponto, o despacho recorrido permanece incólume, quando assevera:


 


Também, inexistem provas de ter a denunciada ROSEANA SARNEY se beneficiado, direta ou indiretamente, dos recursos públicos liberados no projeto USIMAR. Não há qualquer indício de prova vinculando os valores liberados no projeto USIMAR aos R$ 1.300.000,00 apreendidos na sede da empresa LUNUS’ (autos, fls. 981).


 


Relevante também é a assertiva do despacho recorrido, no sentido de que:


 


‘O fato de ter a co-denunciada ROSEANA SARNEY presidido a 269ª reunião do CONDEL, onde se deu a aprovação do projeto USIMAR, não consiste em demonstração concreta de concorrência para o desvio de recursos públicos, por falta de relevância causal (requisito do concurso do agente) de sua conduta para o resultado dos supostos crimes.


É que a aprovação do projeto USIMAR decorreu do voto de 16 (dezesseis) pessoas (representantes dos Estados da Amazônia Legal e Ministérios), por isso, o seu voto, apenas, consistiu em conduta irrelevante para aprovação do referido projeto. Não fosse assim, deveriam ser denunciados todas as pessoas que participaram da referida reunião, tendo em vista que todos votaram favoravelmente à aprovação do projeto USIMAR’ (autos, fls. 980).


 


Em suma, o Ministério Público opina no sentido do improvimento do recurso, o que, processualmente, significa um pedido de arquivamento do Inquérito (Inquérito Policial nº 015/2.002-CGCOIE (2002.43.00.001401-6), com relação a Roseana Sarney Murad.”


 


 


                        De fato, conforme observou o representante do Ministério Público junto a esta Corte, não logrou a denúncia oferecer elementos objetivos que demonstrem o liame entre a atuação da denunciada e os alegados fatos criminosos.


                        Tal como anota o magistrado de primeira instância, a mera participação na reunião que resultou em aprovação do Projeto Usimar não constitui elemento suficiente para se concluir que há indício de conduta criminosa imputável à denunciada. E também não há provas de ter a denunciada se beneficiado, direta ou indiretamente, dos recursos públicos liberados no projeto USIMAR.


                        Tal deficiência, apontada no despacho que rejeitou a denúncia, não restou suprida nas razões do recurso em sentido estrito. Ao contrário, limita-se a peça recursal a uma série de conjecturas despidas de qualquer substrato probatório.


                        Cabe asseverar, por oportuno, que a admissão de processos criminais sem qualquer indício de autoria representa inaceitável ofensa ao princípio da dignidade humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe a um indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais, que não devem estar calcadas em conjecturas.


Lembre-se, sobretudo, do significado especial que a ordem constitucional conferiu ao princípio da dignidade humana (art. 1º, III). Na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do ser humano em objeto de degradação por meio de processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do ser humano a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18).


Negar proteção judicial nas hipóteses em que é devida e, no presente caso, inexorável (pois não há qualquer elemento nos autos que ofereça fundamento para submeter a requerida a uma ação penal), implica ferir a um só tempo o princípio da proteção judicial efetiva (art. 5º, XXV) e o princípio da dignidade humana (art. 1º, III).


Por fim, a par desse prejuízo no plano dos direitos fundamentais, não é difícil perceber que uma acusação mal formulada, se por um lado pode impor prejuízos irreparáveis ao cidadão, constitui também uma via para a impunidade.


As razões do recurso em sentido estrito ora em exame fundam-se em uma série de alegações despidas de substrato probatório. Não há qualquer demonstração de que exista algum nexo entre uma conduta da acusada e um específico ato criminoso.


No lugar de apresentar elementos objetivos que revelem os indícios de autoria, ocupa-se a peça recursal com uma série de petições de princípio, em que se dá por demonstrado justamente aquilo que se deveria demonstrar [e.g., as seguintes afirmações: “Jorge Murad e Roseana Sarney comandavam o núcleo da organização criminosa sediado no Maranhão (…)”; “Roseana e (…) Jorge Murad (…) combinaram com Ulbi e Hübner que tomariam todas as providências políticas e administrativas para simular a instalação do projeto no Maranhão, com o objetivo comum de contribuir para que fossem pelos membros da organização apropriados ilicitamente recursos públicos federais por intermédio de financiamento da SUDAM/FINAM”.           “(…) Roseana (…) tinha se comprometido com Murad, e este com Ulbi e Hübner a permitir a apropriação ilícita dos recursos públicos federais”. “(…) Roseana atuou no sentido, agora, de omitir-se para permitir a apropriação ilícita dos recursos públicos federais”].


A par de tais afirmações, os atos objetivamente vinculados à acusada (participação em reunião do CONDEL e transferência de terreno em que se localizaria o empreendimento) constituem atos de administração superior que, em certa medida, fazem parte da rotina de qualquer Governador de Estado. Tais atos, se por um lado poderiam (em tese) permitir discussões quanto à sua adequação à disciplina legal-administrativa, por si sós não permitem vislumbrar indício da prática dos crimes descritos na denúncia e atribuídos à ex-Governadora do Estado do Maranhão.


Fosse correta a abordagem adotada pelo órgão acusador, no que toca especificamente à recorrida, que é o que interessa no caso, restaria inviabilizado o exercício dos cargos de direção máxima no âmbito de qualquer Poder da República. De fato, na linha da acusação, sempre que houvesse um crime no âmbito da Administração Pública, não seria difícil estabelecer o “indício” incriminador de um Governador ou mesmo do Presidente da República, tendo em vista a posição de supremacia hierárquica de tais autoridades em relação a todos os servidores.


A partir de um ato do Chefe do Executivo (geral ou concreto) pode ocorrer (e usualmente ocorre) uma sucessão de atos administrativos e, entre estes, infelizmente, podem estar atos ilícitos. Mas apenas uma visão distorcida e autoritária permitiria atribuir ao Chefe do Executivo responsabilidade criminal por qualquer ato ilícito praticado no âmbito de sua administração.


Note-se, ainda, em outra perspectiva, que o próprio ato do Chefe do Executivo pode ser ilícito no plano administrativo sem que isto implique uma ilicitude no plano criminal.


Os critérios para a acusação penal são absolutamente distintos daqueles que permitem as impugnações dos atos administrativos em geral. Tem-se tornado comum a confusão entre esses dois ordenamentos e a tentativa de converter qualquer discussão quanto à legalidade de atos administrativos em controvérsia de natureza criminal. Essa é uma perspectiva equivocada e abusiva.


            Diante da visão adotada pelos representantes do Ministério Público que atuam junto à primeira instância, no caso, surge, de plano, um questionamento. A mera participação, de um agente político, na elaboração de um ato considerado ilegal ou mesmo inconstitucional, implicaria necessariamente a prática de um crime?                    Esse questionamento não é irrelevante. A revisão judicial dos atos da administração atesta, a cada dia, a prática de inúmeros atos administrativos ilegais. Pode-se dizer que isso é algo rotineiro, bastando ver os mandados de segurança que são diariamente deferidos em nossos tribunais. Isso é, ademais, admissível, haja vista que as competências administrativas são exercidas com respaldo num sistema legislativo bastante aberto e flexível, tendo em vista a própria natureza da atividade administrativa. A ilegalidade faz-se presente mesmo no âmbito do exercício de competências administrativas na esfera do próprio Poder Judiciário. Indaga-se. Quantas vezes este Tribunal não fulminou, por ilegalidade, atos administrativos praticados no âmbito de Cortes Superiores? Os membros destas Cortes que subscreveram tais atos seriam criminosos?


            Evidente que não. Do mesmo modo que os chefes do Executivo sujeitam-se aos estatutos jurídico-penais, também gozam das garantias fixadas nesses mesmos estatutos, razão pela qual não estão sujeitos aos ônus do processo penal sem a existência de qualquer indício de que há correlação entre a conduta daquela autoridade e o suposto ato criminoso.


Não há reparos a fazer, portanto, ao despacho do ilustre Juiz Federal da 2ª Vara Federal de Tocantins, no que diz respeito à rejeição da denúncia oferecida contra a Senadora Roseana Sarney.


Nesses termos, tendo em vista as razões apresentadas pelo órgão do Ministério Público legitimado a oferecer denúncia perante este Supremo Tribunal, determino o arquivamento do feito.


Publique-se.


Arquive-se.


Brasília, 1º de agosto de 2003.


 


 


Ministro GILMAR MENDES


Relator

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