Íntegra do discurso do presidente do STJ
REFORMAS DO JUDICIÁRIO E DA PREVIDÊNCIA
Ministro Nilson Naves
Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do
Conselho da Justiça Federal
Apropriado e feliz momento de convocação, porque, aqui e agora, contando com a presença de toda a magistratura, temos o espaço aberto para que emitamos um único e mesmo documento. Aliás, muito tenho falado da necessidade desse único e mesmo documento.
Documento que enfrente as questões relativas às reformas do Judiciário e da Previdência. O Congresso Nacional, ao longo de onze anos, não se definiu quanto à do Judiciário, não será no período de sete horas em que estaremos reunidos que nascerá um documento pronto e acabado. Espero que este fórum de debates sirva sim para que nos unamos, ainda mais, em torno dessa proposta única em defesa de um Judiciário forte e independente, rápido e eficaz, atuante e prestante.
Também são conhecidas as minhas idéias sobre as reformas em curso no tocante ao regime previdenciário e remuneratório da magistratura nacional. São idéias e propósitos, e de outra forma não poderia mesmo ser, que coincidem, ao meu ver, com princípios tão caros e tão afeiçoados ao Judiciário que nos vêm do início da República, quando Campos Salles afirmara, de modo enérgico e categórico, na Exposição de Motivos do Decreto nº 848, de 1890: “De poder subordinado, qual era, transforma-se (o Judiciário) em poder soberano”, são princípios que asseguram essa soberania, conseqüentemente, a independência e a imparcialidade, asseguram em nome, não em nome dos magistrados – o que, se assim fosse, soaria egoístico -, mas, isto sim, em nome da sociedade, a saber, em nome de todos nós, jurisdicionados, princípios esses como os seguintes: os magistrados são agentes políticos, a magistratura constitui típica carreira de Estado, os juízes gozam da irredutibilidade de vencimentos, da inamovibilidade e da vitaliciedade.
Juridicamente, compondo o princípio maior da separação dos Poderes, hão esses princípios de ser observados com todo o rigor, daí ser imperativo, em nome de toda a sociedade, que à magistratura (em conseqüência, ao Ministério Público) se dê, nas projetadas reformas, tratamento diferenciado, por exemplo, não lhe diminuindo, maliciosamente, os seus já parcos vencimentos, nem lhe cortando a paridade entre vencimentos e proventos.
O momento é dos melhores, devendo, estou certo, ser todo ele absorvido, aqui e agora, com essas idéias, a fim de que, ao final desta tarde, tenhamos uma só palavra de toda a magistratura na defesa de um documento único, que servirá de roteiro e de alerta a quantos não querem ver que, diminuindo o Judiciário, estarão diminuindo a sua soberania, diminuindo, por isso mesmo, as garantias de todos nós, diminuindo, ainda, as prerrogativas do Estado democrático de direito, enfim, transformando a si próprios em objeto da história, quando se esperava que não deixassem de ser sujeito da mesma história.
A mim se me afigura, com todo o respeito, não dispormos de tempo, aqui e agora, para questões outras, como as da reforma do Judiciário. Até porque não sei em que termos o debate se poria. Vejam que, se formos discutir agora questões envolvendo controle ou distribuição de competências, iremos noite adentro, sem, no entanto, ao meu ver, dar conta das nossas tarefas.
Mesmo assim, deixo registrados quatro pontos a respeito da tão esperada reforma do Judiciário:
1) Como é de todos sabido, encontra-se no Senado Federal a Proposta de Emenda nº 29, de 2000 (nº 96, de 1992, na Câmara dos Deputados), que introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário. O que eu espero é que essa Proposta caminhe, vá à frente e chegue ao seu final. Com isso, deixo mais uma vez registrada a insatisfação do Superior Tribunal e do Conselho da Justiça Federal com a idéia de zerar a reforma.
Vejam que, tanto na Câmara quanto no Senado, o Superior Tribunal de Justiça foi autor de uma série de sugestões e recomendações, enfim, de emendas às Propostas 96/92, na Câmara, e 29/00, no Senado, algumas de cunho institucional, relativamente à má distribuição atual das competências envolvendo a instância de superposição, outras atinentes à magistratura em geral; todas, porém, conforme as várias saudações recebidas, também com o propósito de facilitar o andamento dos processos.
Nós do Superior e nós do Conselho da Justiça Federal estamos dispostos a defender as propostas, como, aliás, antes as defendíamos, todas elas, as sugestões apresentadas, defendendo-as, tintim por tintim. Fazem parte do meu discurso de sempre, quando da minha posse na presidência, antes, dos meus votos nos órgãos julgadores do Superior, antes ainda, quando dos trabalhos constituintes, integrando eu, recém-chegado ao Federal de Recursos, a comissão nomeada por aquele Tribunal para acompanhar os trabalhos da Assembléia instalada em 1987.
2) Destaco, dentre as nossas sugestões, a sensível questão relativa ao controle do Judiciário – idéia a que me vinculei desde os originários trabalhos constituintes, quando com proveito se instituiu o Conselho da Justiça Federal.
Quanto à criação do Conselho Nacional de Justiça, é, em si, uma excelente proposição. O ponto de partida de toda a polêmica gira em torno da sua natureza. Nós, do Superior e do Conselho da Justiça Federal, preconizamos seja o Conselho integrado tão-só por membros do Poder Judiciário, à semelhança do que aconteceu no âmbito da Justiça Federal.
Ora, quando, pela primeira vez, se pensou nesse tipo de instituição, pensou-se em dar proteção à magistratura. Foi o que aconteceu, por exemplo, na França e na Itália. No Brasil, andam, de algum tempo para cá, a apregoar a idéia de um controle externo, o que, data venia, antes de conferir proteção à magistratura, pressupõe puni-la. Isso, no meu modesto entender, significa colocar-se na contramão da história.
Necessitamos sim, dúvidas não há, de um controle, mas feito por pessoas ou membros do Judiciário, pois o controle externo ofende princípios jurídicos. Vejo nisso uma quebra da independência do Poder, o que, no caso, ao meu ver, é inconstitucional, pois fere a cláusula pétrea contida no art. 2º. Vê-se, pois, respeitosamente, que quem é contra o controle externo é o próprio texto da Constituição.
3) Dúvidas não há de que a reforma deve ser feita por etapas; de preferência, sempre a cargo exclusivo do próprio Poder Judiciário, se não, que o Judiciário seja amplamente ouvido, a fim de que possa eficazmente contribuir para a elaboração de todo e qualquer projeto.
4) Por isso, causou-me a mim e ao Superior mal-estar e evidente desconforto a criação, no Ministério da Justiça, de Secretaria destinada a cuidar da reforma do Judiciário. É que sempre nos pareceu, e tenho a sensação de que os magistrados de modo geral compartilham esse pensamento, que semelhantes iniciativas hão de partir, antes de tudo, do próprio Judiciário.
Senhor Presidente Maurício Corrêa, aqui ficam rápidas impressões do Superior e do Conselho da Justiça Federal a respeito da reforma do Judiciário. Entretanto, julgamos de melhor aviso devamos, aqui e agora, debruçar-nos sobre o que diz respeito “aos efeitos do regime previdenciário e remuneratório da magistratura nacional”. Nesse ponto, as posições do Superior e do Conselho já são amplamente conhecidas, até porque as nossas preocupações são as mesmas de toda a magistratura brasileira.
O Poder Judiciário, repito, é uma carreira de Estado, composta essencialmente de agentes políticos titulares de cargos estruturais da organização política do País; assim sendo, não pode ser inserido, segundo os moldes pretendidos pelo governo, na vala comum.
As mudanças, como colocadas na PEC 40/03, afrontam a independência do Poder que compomos e, em relação a matérias como a aposentadoria dos magistrados, demandam nossa iniciativa e devem ser disciplinadas por lei complementar, segundo insculpido no art. 93 da Constituição Federal.
As garantias constitucionais conferidas à magistratura, entre elas, notadamente, a de vencimentos dignos, à altura do cargo e da importância da sua missão (Story e Barbalho), e a de aposentadoria integral, são, a bem da verdade, garantias que a própria sociedade erigiu com o objetivo de ter bons juízes, isentos de pressões políticas e de possíveis investidas dos detentores do poder econômico.
Como defensor do Estado democrático de direito, o Judiciário não pode sujeitar-se a determinados pontos dessa reforma, a saber, o fim da integralidade da aposentadoria e o fim da paridade entre ativos e inativos. A vitaliciedade conferida pela Constituição já é suficiente para derrubar essas possibilidades. Os vencimentos da aposentadoria devem ser integrais, pois eles nada mais são que a integração especial da garantia da vitaliciedade.
Ainda sobre os pontos em referência, a proposta de emenda não prevê exatamente como será o cálculo dos proventos de aposentadoria; corresponderá a uma média das remunerações considerando-se também as contribuições recolhidas ao INSS, bem como aquelas do regime próprio dos servidores, o que gera um oceano de dúvidas e incertezas sobre quem irá aposentar-se.
Com o fim da paridade entre ativos e inativos, os reajustes para os já aposentados seriam feitos por índice desconhecido para se preservar o valor real do benefício, fato que certamente reduziria o padrão de vida do magistrado, ainda mais levando-se em conta o objetivo de estabelecer o mesmo teto do regime geral da Previdência.
Outro ponto importante – e um dos maiores equívocos da projetada reforma – é a limitação da remuneração de desembargador em setenta e cinco por cento do percebido por ministro do Supremo Tribunal Federal. Como é consabido, o Poder Judiciário tem caráter nacional; não pode ser seccionado em estadual e federal.
A propósito, o saudoso mestre Geraldo Ataliba pregava que “os mesmos princípios, garantias, vedações, deveres e direitos aplicáveis a todos os juízes em geral demonstram a igualdade de tratamento que a Constituição estabeleceu a todos os membros do Judiciário”. Como se vê, não podemos admitir tamanha ingerência em nosso Poder – a criação de subcategorias – o que viria ferir sua natureza eminentemente nacional.
Colegas, como Poder independente e forte que somos, devemos então nos unir e agir ante o descabimento de vários pontos da reforma da Previdência, para que, aqui e agora, possamos continuar com serenidade nossa missão de resguardar o Estado democrático de direito.