“A corte necessita de provocação” – Gazeta do Povo (Curitiba) – Ministro Marco Aurélio

15/10/2001 17:15 - Atualizado há 12 meses atrás








“O STF é um tribunal técnico, 
mas que implementa a política 
em prol dos cidadãos, realizando
 a Justiça.”

“A corte necessita de provocação”


Para o ministro Marco Aurélio Mello, associações, sindicatos e partidos políticos têm grande importância no fomento das discussões jurídicas


O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Marco Aurélio de Mello, contesta as acusações feitas por administradores públicos sobre a existência de uma indústria de liminares. O caso mais recente foi da Petrobrás, que acusou diretamente alguns juízes por terem concedido liminares para que distribuidoras de petróleo deixassem de recolher o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Essas decisões tiveram destaque em Goiás, mas o Paraná também é citado em inúmeras ações discutidas entre as distribuidoras e já tornadas públicas.


Para o ministro, não há essa história de “indústria de liminar”, o que existe é o direito “à garantia constitucional” de acesso ao Judiciário “para preservar direito ou obstaculizar uma das conseqüências de uma ameaça ao próprio direito”. Se as liminares prejudicam a administração pública. é porque “administração pública vem claudicando”, devolve o ministro. Para os leigos em direito, significa dizer que, se uma liminar chega a ser cumprida e isto prejudica o estado, é porque o estado não foi capaz de se defender com a qualidade exigida.


Ministro Marco Aurélio de Mello, antes mesmo de assumir a presidência, tomou decisões polêmicas ou fez comentários que geraram muitos debates. Em alguns casos, fez a defesa do instituto do direito acima de todas as pressões, interpretando a lei rigorosamente. Em outros, chegou a entrar em choque com seus pares no STF, ao propor a demissão de parentes e colocar em discussão questões sobre os salários da magistratura.


Em entrevista para a Gazeta do Povo, o ministro explicou todos os pontos que hoje mais atraem o interesse dos brasileiros que acompanham o trabalho da Justiça ou procuram saber como avança a magistratura brasileira.


Gazeta do Povo – O Judiciário é moroso e está sobrecarregado. Há solução?


Mello – Nós vivemos uma quadra ímpar, considerado o grande número de processos. Eu creio que todos devem estar voltados para a viabilização do Judiciário. Viabilização do Judiciário que pressupõe uma sentença final célere e um espaço de tempo razoável. E nós aprendemos com os nossos pais. O exemplo vem de cima. Que o estado adote portanto postura que sirva de norte aos cidadãos comuns.


Gazeta do Povo – A “indústria de liminares” existe?


Mello – Não existe indústria das liminares, porque a garantia constitucional, o acesso ao Judiciário para preservar direito ou obstaculizar uma das conseqüências de uma ameaça ao próprio direito. Como isso ocorre, como o Judiciário protege um direito que está ameaçado? Mediante liminar. Por isso nós temos o instituto da liminar, o instituto da tutela antecipada. É claro que a liminar é algo precário e efêmero. Pode-se dizer que elas prejudicam a administração pública. Se são implementadas é porque a administração pública vem claudicando. Então entra o Estado-juiz para decidir a respeito. E faz com apego ao que está estabelecido, porque o Estado-juiz não está engajado numa política governamental em curso. Como toda política governamental é isolada e momentânea.


Gazeta do Povo – A Lei de Responsabilidade Fiscal ajudaria?


Mello – Sim. Eu mesmo evoluí para salvar a Lei de Responsabilidade Fiscal. O voto foi fundamental porque senão a decisão teria sido no sentido da suspensão do artigo 20, que estabeleceu tetos em relação a cada qual dos poderes: Executivo, Judiciário, Legislativo e Ministério Público. Quando eu evoluí todo mundo ficou perplexo! Mas porque perplexo? Cumpre ao juiz evoluir, tão togo se convença de que assiste maior razão à tese que ele inicialmente repudiou. Nós, magistrados, exercemos uma missão que é sublime. A missão de julgar os semelhantes e a missão de julgar os conflitos envolvendo os nossos semelhantes. Nós devemos fazer isso com o espírito aberto, buscando sempre naquele trinômio Lei, Direito e Justiça, alcançar e implementar a Justiça.


Gazeta do Povo – Sua posição sobre o aumento salarial dos servidores públicos, provocou controvérsias. Hoje o senhor é rotulado como “a voz rouca dos oceanos”.


Mello – Eu saí como defensor de uma decisão do colegiado. Nós não nos reunimos, praticamente uma tarde inteira, para nada. A nossa decisão proclamou a existência de um certo direito. O direito dos servidores de verem encaminhado projeto pelo Executivo ao Congresso Nacional, para os deputados e senadores deliberarem a respeito.


Gazeta do Povo – Existem outras questões cruciais em que seriam necessárias várias reuniões dessa corte para observar os direitos dos cidadãos. Ou o senhor acha que apenas o salário é uma questão fundamental?


Mello – Quando provocada a corte vem atuando. E vem atuando proclamando a ordem jurídica em vigor. Agora ela não tem uma atividade de ofício. Ela necessita dessa provocação.


Gazeta do Povo – Como o cidadão poderia ter uma melhor condição de propiciar essa “provocação”? As coisas ainda não estão muito distantes?


Mello – No campo por exemplo da constitucionalidade ou não das leis. Da apreciação que nós proclamamos abstrata do tema. Sem estar envolvido num conflito de interesse em si, via atuação das associações. As associações podem provocar o procurador-geral da República, representando junto a ele para que ingresse no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Têm-se os partidos políticos, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que tem um papel fundamental em defesa da sociedade. Têm-se também as confederações sindicais e as associações de classe de âmbito nacional que podem provocar e devem provocar o Supremo Tribunal Federal, que, num único processo, decidirá o interesse de centenas, de milhares de pessoas, evitando-se um emperramento da máquina do Judiciário com processos individuais. Chega-se imediatamente a quem tem a última palavra sobre o alcance da Constituição Federal, que é o STF. Por isso eu sou um entusiasta do controle concentrado de constitucionalidade.


Gazeta do Povo – O senhor frisou a atuação da OAB, de entidades, de associações e de confederações. Mas a cultura jurídica entre a necessidade do povo e a realidade desta população apresenta um hiato fantástico.


Mello – O ingresso em juízo nada mais é do que o exercício da cidadania. Quantos e quantos tendo o direito espezinhado deixam de ingressar em juízo para não se aborrecer. Isso é péssimo em termos de apego ao que está estabelecido, apego a princípios. São os juízes responsáveis pela morosidade? Não. Os juízes já chegaram ao máximo do esforço possível. Nós estamos convivendo com centenas, milhares de processos.


Gazeta do Povo – Mas nós encontramos o apartheid jurídico-social. O cidadão comum é massacrado pelas leis que lhe são atribuídas em função do princípio de que o cidadão nesse país tem dois direitos; o primeiro o dever e o segundo a obrigação e fica desassistido na sua necessidade.


Mello – O cidadão comum quando bate às portas do Judiciário, encontra o implemento do trinômio: Lei, Direito e Justiça. Quase sempre presta-se homenagem ao último instituto, que é o instituto Justiça. Essa é a minha visão como juiz e eu espero que todos a tenham.


Gazeta do Povo – Os três poderes têm que conviver de uma maneira independente e harmônica. Mas costuma ser independente, mas nem sempre harmônica. Em que o apartheid social influencia as atribuições do poder?


Mello – Não. É independente e harmônico. Eu creio que a independência e a harmonia pressupõem as instituições funcionando. Pela Constituição Federal, a última palavra quando surge um conflito de interesses é do Judiciário. E é bom que assim o seja. Porque o Judiciário, pressupõe-se, é um órgão independente.


Gazeta do Povo – O Supremo Tribunal Federal é hoje um tribunal técnico ou político?


Mello – É um tribunal técnico. Mas que implementa também a política, mas a política institucional, em prol dos cidadãos, realizando a Justiça.


Gazeta do Povo – A sua administração é voltada para a questão da modernidade da Justiça diante dos avanços do país. Mas a casa não deixa de ser conservadora. Democraticamente ou monocraticamente ela é conservadora.


Mello – A afirmação não é minha. O que eu percebo é que integro um colegiado. E há uma máxima, segundo a qual o verdadeiro equilíbrio decorre do somatório de forças distintas. Então é natural que se tenha um integrante mais ou menos conservador. Isso faz parte do colegiado, da liturgia do próprio colegiado.


Gazeta do Povo – O senhor diz que a sua administração quer fazer Justiça atendendo ao povo. Mas essa Justiça ainda está muito distante do povo.


Mello – Está porque a estrutura é deficiente. O que tivemos em 1988 foi uma previsão salutar. Inseriu-se no rol das garantias constitucionais que o Estado organizaria a Defensoria Pública para prestar assistência jurídica e judiciária aos necessitados. Pergunta-se, quantos anos já se passaram, da promulgação da Carta. Nós temos essa Defensoria estruturada no Brasil? Com raras exceções em alguns estados. Há uma dificuldade de chegar-se ao Judiciário, porque o cidadão comum não tem o que se denomina em Direito capacidade postulatória. Ele tem capacidade para estar em juízo. Se não tiver ocorrido uma interdição. Mas não tem a titularidade das petições a ser encaminhadas. Ele não pode diretamente, com exceção do que ocorre no tocante à Justiça do Trabalho, ele não pode ir a juizados especiais em primeira instância, não nas Turmas Recursais, ele não pode pleitear diretamente. Precisa contratar um advogado. Então surge a dificuldade. Quase sempre aquele que vem a juízo atravessa uma fase difícil. E não tem como despender numerário para contratar um advogado. Aí surge pela Constituição a obrigação do Estado de colocar em benefício do necessitado um defensor público. E infelizmente nós não temos a estrutura para tanto.


Gazeta do Povo – O que o senhor pensa a respeito da súmula vinculante?


Mello – Eu acredito muito na espontaneidade do juiz. Na atuação independente do juiz. Na atuação do juiz curvando-se apenas à própria consciência. É possível ter-se a súmula vinculante em relação ao próprio judiciário? Ao meu ver não. A súmula deve ser vinculante principalmente para a administração pública. Porque ela anuncia o que é legal e o que é ilegal. Mas o juiz precisa ter independência. Mesmo porque diante de uma sobrecarga de processo qual é a tendência do homem julgador? É a acomodação. Eu receio muito que a súmula vinculante acabe generalizando as hipóteses.


Gazeta do Povo – Nós vivemos num processo político em que a corrupção é a regra. A Justiça é a esperança do cidadão, que não consegue ver suas demandas resolvidas, porque ele, distante da Justiça, não pode tomar nenhum tipo de providência. Muitas vezes o processo de corrupção está nas mãos dele. Por que essa lentidão? Por que a Constituição que delegou tantos poderes à Justiça não consegue fazer Justiça?


Mello – Vamos corrigir inicialmente a pergunta. A corrupção não é a regra. A corrupção é a exceção. Hoje o Brasil conta com uma instituição que vem funcionando, que é o Ministério Público. Pela vez primeira afloram fatos. E aflorados os fatos chega-se a conseqüências. Quer no campo político, quer no campo penal. Isso é muito bom em termos de aprimoramento das instituições pátrias. Isso é muito bom em termos de mudança até mesmo cultural. Nada mais do que a impunidade, implica até mesmo a perda do que eu denomino como freios inibitórios.

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