A República de Marco Aurélio de Mello – Entrevista para a República, site Primeira Leitura
A República de MARCO AURÉLIO DE MELLO
O presidente do STF, alvejado pelo corporativismo antes mesmo de assumir o cargo, deixa claro que a Constituição não se verga ao poderoso de plantão e afirma que “se paga um preço para viver em democracia”
Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, 55 anos em julho, pediu ao Planalto que não temesse sua atuação como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), cargo que assumiu em 1º de junho – por dois anos a contar desta data. Será o ministro destinado a não mover uma palha para que o Judiciário seja complacente com a transitoriedade da política. Antes de assumir, comunicou que dispensaria dos cargos de confiança uma casta de aposentados cujos bicos remunerados no STF podem levar seus salários a R$ 22.803,61. Sete dos 11 juízes da corte suprema desceram ao reino do desdouro – menos Celso de Mello, Ilmar Galvão e Sepúlveda Pertence – e alteraram o regimento para preservar os bons amigos. A arquitetura foi a de um golpe. Restou-lhe a perseverança. A mesma que demonstra no combate ao uso abusivo de medidas provisórias e que o levou a tomar uma decisão inédita: vai pôr em julgamento os 3 mil processos de dívidas judiciais que envolvem Estados, alguns com pedidos de intervenção, como São Paulo. “Há uma corrente que diz que não cabe ao STF definir uma intervenção quando não se tem o homem da mala ou o trem pagador. Mas a intervenção tem um sentido pedagógico: cobrar responsabilidade.” A seguir, a entrevista do novo presidente do STF dias antes de assumir o cargo.
República-Primeira Leitura: O sr. não estranha o fato de todo governo reclamar da Carta e tentar altera-la em nome da governabilidade?
Marco Aurélio de Mello: A Constituição, por natureza, é um diploma perene, passível de ser interpretativa. Mas não é algo que se deva mudar, como se muda no Brasil, da noite para o dia. Há um desvio: pensamos que é possível corrigir as mazelas mediante novas leis. Precisamos é de homens que cumpram as leis existentes. Se, com uma legislação estável, já surgem dúvidas na interpretação, o dizer se, a cada dia, tivermos uma nova norma? Como o brasileiro não acredita em outra solução para os problemas a não ser a solução jurídica, nós temos a grande carga de processos. No Brasil, há um desequilíbrio entre órgãos e população. Nós temos um juiz para cada grupo de 20 mil habitantes, com uma oscilação normativa enorme. Nos últimos 30 anos, tivemos uns 12 planos econômicos – cada governo chegou com o seu plano milagroso para corrigir o Brasil.
Como os planos milagrosos afetaram a Constituição?
Potencializando o fim em detrimento do meio. E o fim sempre foi único: o afastamento da inflação sabe Deus como.
Por que o Judiciário, na época desses planos milagrosos, como o confisco da poupança no governo Collor (1990-1992), não se posicionou contra e agora atende às demandas que eles geraram?
Eu repeti uma vez em plenário – e aludi até a uma expressão que levou um colega a pensar que eu estivesse diminuindo a Constituição Federal – uma expressão do presidente Eurico Gaspar Dutra (1945-1950). Quando não havia consenso entre os ministros, ele indagava o que dizia o livrinho e determinava o cumprimento do livrinho. Então, eu disse no plenário: se, com o meu voto, para prevalecer a Constituição, o teto tiver de cair, vai cair. Paga-se um preço para viver em democracia. E acho até que o preço é baixo, que é o respeito ao que está estabelecido. O que nós não podemos é ficar mudando a Constituição de acordo com as circunstâncias reinantes. Violência maior do que o confisco não poderíamos ter, mas, mesmo assim, não houve uma providência imediata, o Judiciário não acolheu uma pretensão que pudesse afastar do cenário o bloqueio. Isso serve de experiência para os dias atuais, para percebermos que mais importante do que salvar a política em curso é manter-se a intangibilidade dos princípios acertados.
O Brasil assinou o Tratado de Roma para criar o Tribunal Penal Internacional (TPI). Mas há três questões que conflitam com a Constituição brasileira: prevê prisão perpétua, e não temos; prevê a “entrega” de brasileiros, e a Carta não permite a extradição de nacionais. Como o sr. encara o assunto?
No Brasil ninguém pode ficar sob a custódia do Estado por mais de 30 anos, seja qual for a pena. Mas temos a previsão de pena de morte limitada à quadra reveladora de uma guerra. Há quem assevere, e de forma peremptória, que a jurisdição é prejudicado da própria soberania, mas desconhecendo que nós vivemos em uma grande comunidade, que é a comunidade internacional. Precisamos observar não apenas o juízo que formamos no Brasil sobre certas matérias, mas também o contexto maior, que é o internacional. O Brasil precisa (no caso do TPI) discutir, evoluir e encontrar soluções para aquilo que, para mim, são apenas aparentes impasses.
E a questão do controle externo do Judiciário?
Por que não praticar, antes, o controle interno? Não o controle interno em cada um dos tribunais. Controle mediante um órgão, o Conselho Nacional da Magistratura, composto de integrantes e egressos dos diversos tribunais. Receio que, se tivermos um controle externo, de acordo com a composição desse órgão, nós poderemos ter influências nefastas no ofício de julgar. Tarda o Conselho Nacional da Magistratura. Não houve ainda a vontade política de aprovar a Lei Orgânica da Magistratura, que está no Congresso.
A reforma do Judiciário está no Congresso. Se é para reformar, qual a sua prioridade?
A questão central é a celeridade no desfecho das controvérsias. A reforma que está no Congresso diz respeito, em si, à organização do Judiciário, e não a vejo como fundamental. O que nós precisamos é desburocratizar o processo, conciliar dois valores: o valor “justiça”, mediante o qual se busca a melhor solução para o conflito, e o valor “segurança jurídica”, que resulta no restabelecimento da paz social abalada pelo conflito. Não precisamos mexer na Constituição, mas nas regras do processos.
A lentidão do Judiciário não tem a ver com a enormidade de processos a ser julgados?
Tem, mas não só. A par dessa quantidade, nós temos uma legislação que pode e deve ser aperfeiçoada para enxugar, por exemplo, o rol de recursos. Parece que, no Brasil, em relação à atuação judicante dos órgãos do Estado, nós presumimos não o que ocorre normalmente – o acerto da decisão –, mas o desacerto extraordinário e extravagante. E ensejamos as partes, ambas indistintamente, a ré e a autora, a fazer um recurso sistemático. É comum termos, em um mesmo processo, não um recurso que viabilize a correção de um erro de julgamento, mas recursos sucessivos. Surge até o problema em que o advogado não atua com independência técnica desejável, deixa de alertar o cliente quanto ao caráter protelatório de um recurso.
Por que o Judiciário não age contra essas chicanas?
Há um escrúpulo muito grande do Judiciário em enquadrar a parte nesses casos como litigante de má-fé. O legislador já nos deu instrumental: podemos aplicar uma multa, condenar a parte que prejudicou a outra parte e uma indenização de até 20% do valor da causa devidamente corrigida. Mas levante você as decisões que realmente tenham implementado as conseqüências da litigância de má-fé. São pouquíssimas.
O Estado é o grande entulhador de processos no Judiciário?
Sem dúvida alguma. Se fizermos um levantamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal, nós vamos ver que entre 70% a 80% dos processos envolvem o Estado, quer como autor, quer como réu.
A tradição manda que o Estado se defenda até a última possibilidade favorável ao cofre público…
Isso acontece porque predomina a maledicência. Se o profissional da advocacia que defende os interesses do Estado partir para um acordo no processo, ele vai ser tido como cooptado pela parte contrária. Como se a regra fosse o procedimento condenável. O acordo, em outros países, é regra para evitar até mesmo a demanda jurídica. O Estado recorre a mais não poder. Mas, depois, quando já não cabe mais recurso, há dificuldade de o cidadão comum ver a sentença executada depois de proferida.
Por que isso acontece?
Enquanto o particular, em uma execução forçada, tem 24 horas para pagar ou indicar bens à penhora, ou entrar com embargos judiciais contra a execução, o Estado tem 18 meses a partir da expedição do precatório. E ainda tivemos uma construção jurisprudencial perniciosa, segundo a qual o precatório não pode ser indexado. Hoje, a inflação controlada, o Estado, mesmo prevalecendo essa ótica, paga 85% da dívida. Mas, quando a inflação estava a galope, em dois dígitos, o credor tinha a desventura de receber entre 3% a 5% do valor devido. E, aí, se a decisão final implica a obrigação de o Estado pagar – refiro-me à União, Estado ou municípios, autarquias e fundações públicas-, esse cidadão ainda não logrará tornar essa sentença. Aqui no STF, nós temos cerca de 3 mil processos, sob a relatoria da presidência, versando pedidos de intervenção em Estados pelo descumprimento de decisões judiciais. Eu mesmo tenho um pedido de intervenção em São Paulo que está ligado a uma desapropriação ocorrida em 1970.
Qual é a premissa desse processo que já tem mais de 30 anos no Judiciário?
Ainda não foi satisfeita a indenização que a Constituição Federal quer justa e prévia. Prévia em relação à perda da posse da propriedade.
O Ministério Público Federal vem insistindo, ainda sem sucesso, em eleger diretamente o seu chefe, o procurador-geral. Por que o Planalto tem de indicar o chefe do Ministério Público?
É algo que eu não entendo. Nós temos uma federação, e há princípios constitucionais que tanto servem para a União como para os Estados. Por que o chefe do Ministério Público nos Estados é escolhido a partir de uma lista e só pode ser reconduzido uma vez, enquanto o presidente da República tem a livre escolha e pode perpetuar o procurador desde que conte, é claro, com o assentimento do Senado Federal? A meu ver a alternância é salutar.
O Ministério Público exagera em certas investigações? Há motivos que justifiquem a tentativa de o Planalto criar a Lei da Mordaça contra os procuradores?
O Ministério Público tem um papel fundamental: defender a sociedade. E não cabe providência normativa que iniba sua atuação. Uma atuação que deve ser desassombrada, sem receio quanto a qualquer retaliação ou repercussão. O sistema tem freios e contrapesos, é equilibrado. Abusos podem ocorrer – e ocorrem – em qualquer setor. Mas a ordem jurídica prevê meios para coibir abusos. O que para mim é impensável é ter-se um Ministério Público dentro de uma camisa-de-força.
Há países em que o presidente de República não indica os ministros da corte suprema – afinal, ela é a guardiã da Constituição e vigia os demais Poderes. A nomeação não retira a independência ao STF?
No STJ, por exemplo, o presidente indica e o Senado aprova, mas tudo a partir de uma lista tríplice que, às vezes, começa sendo sêxtupla. No caso do STF, há a livre escolha, e creio que aí o sistema está um tanto quanto capenga. Eu creio que haverá uma segurança maior quanto a guindar um grande valor se passarmos a contar também com um ato complexo, em que o próprio Judiciário atue com uma influência maior daquele que o integrará. Presume-se que o crivo do Judiciário será um crivo técnico.
Uma curiosidade: por que o sr. anda no banco da frente, ao lado do motorista do STF?
Eu geralmente ando no banco da frente. Como presidente, devo ter comigo quase sempre um auxiliar, e esse problema da liturgia da corte está resolvido. Mas eu prefiro andar na frente por achar que, sentar no banco de trás, é um pouco constrangedor para o motorista. Eu gosto de conversar. E quem dirige não gosta de andar atrás, quer ter uma visão maior do trânsito.
Ex-fumantes recorrem cada vez mais ao Judiciário para ser indenizados pela indústria do tabaco, culpando-a pela indução ao vício. Não estamos vivendo um exagero do politicamente correto?
O que é o fumo? Uma mercadoria em relação à qual o próprio Estado cobra imposto. Pergunto: a legalização do comércio do fumo não geraria a responsabilidade do Estado, se é que alguém deve responder por uma opção do próprio cidadão em fumar ou não fumar? Não me parece crível que alguém venha a responder por uma atividade legitimada pelo Estado. Se culpa há, é do Estado.
PROUSTIANAS
Marco Aurélio tem a coragem como virtude; prefere Machado de Assis a Eça, Montesquieu a Maquiavel.
O Carioca e flamenguista Marco Aurélio aceitou submeter-se ao “questionário Proust” – uma tradição dos encontros sociais na Europa do fim do século 19 e início do século 20 -, cuja criação é atribuída a Marcel Proust (1871-1922), o autor de Em Busca do Tempo Perdido. Tal questionário se compõe de perguntas e respostas curtas.
Eça de Queiroz ou Machado?
Machado de Assis, a captação da alma brasileira.
Um livro primordial?
Dom Casmurro, de Machado.
Um jurista inspirador?
Celso Antônio Bandeira de Melo.
Um voto para o Brasil?
A verdadeira democracia calcada em uma maior igualdade social.
Alca: oportunidade, medo ou cuidado?
Oportunidade com os cuidados.
Legalização das drogas?
O exemplo dos países que tentaram implementar a idéia não aconselha.
Aborto?
Questão aberta a ser discutida pela sociedade, dadas as conquistas da mulher no século 20.
Feminismo?
Fenômeno outrora necessário e hoje absorvido pela democracia. Deve prevalecer a igualdade.
Labirintos: melhor se não existissem ou melhor ter regras para andar neles?
Inafastáveis na existência humana; devemos administrá-los.
Eutanásia?
A fase no Brasil é de luta pela sobrevivência.
Cuba ou Haiti se fosse as duas únicas opções?
Moraria em qualquer um dos dois países e lutaria pela prevalência da liberdade, valor maior do ser humano.
Montesquieu ou Maquiavel?
Montesquieu, a base do Estado democrático de direito.
Davos ou Porto Alegre?
Nenhum radicalismo.
Freud ou Marx?
Freud, o conhecimento do homem e a sua realização.
Parentes no Judiciário?
O concurso público.
Tecnologia ou sabedoria?
Tecnologia, fruto da sabedoria.
Margareth Thatcher ou Lionel Jospin?
O equilíbrio como virtude.
Bové ou Stédile?
Em princípio, todo o radicalismo é condenável.
Pena de morte?
Homicídio praticado pelo Estado.
Padre Vieira ou João Paulo 2º?
João Paulo 2º nos primeiros do papado, a luta em prol da liberdade.
Um momento crítico da vida?
Jamais enfrentei; se um dia acontecer, espero faze-lo com serenidade.