“Judiciário: do caos à ordem” – O Globo – Ministro Marco Aurélio

20/05/2002 16:55 - Atualizado há 1 ano atrás

JUDICIÁRIO: DO CAOS À ORDEM


Marco Aurélio


Atualmente, tornou-se quase rotineiro dizer que o Estado, nas três dimensões – Legislativo, Executivo e Judiciário -, encontra-se em crise, conclusão que, além de apressada, parece carecer de uma avaliação eqüidistante do momento ora vivido. Sucedem-se manchetes sobre escândalos das mais variadas matizes, a envolverem tanto o desapego, por certos administradores, a princípios, quanto a morosidade da justiça ou a violência urbana. A veiculação desses temas ganha como que a aparência de novidade, a discrepar do que estaríamos vivenciando nos últimos anos. Não é bem assim. A corrupção de hoje não é mais acentuada do que a de ontem. As mazelas simplesmente vêm aflorando, até porque a sociedade, alertada – graças ao pleno exercício da liberdade de expressão pelos órgãos de comunicação -, cobra dos agentes públicos, em salutar exercício da cidadania, a correção de rumos. Cabe, portanto, a competente atuação do Ministério Público, afigurando-se o Judiciário a maior caixa de ressonância dos inconformismos externados pela população. Vista por esse prisma, é possível afirmar que testemunhamos época alvissareira, já que a impunidade, outrora prática habitual, está a se revelar, dia após dia, e cada vez mais,  coisa do passado. Caminha-se a passos largos para a constatação de uma mudança cultural, provocada pela percepção, do homem comum, da existência de freios inibitórios. E é nessa atmosfera de transformação que se avizinham as escolhas de parlamentares e chefes do Poder Executivo, no âmbito estadual e federal. Mais do que nunca, o cidadão há de compreender o valor de uma decisão individual, mas de crucial e definitiva conseqüência para a coletividade: a participação interessada e construtiva nas eleições. A força está no voto consciente, não apático. A força está na fé, e isso de modo algum haverá de faltar.


Quanto ao Judiciário, o que se nota e o que é dado esperar?


O brasileiro reclama, com razão, da duração de um processo, intuindo ser a celeridade indispensável para se alcançar o objetivo precípuo da jurisdição: o restabelecimento da paz social momentaneamente abalada pelo conflito de interesses. Entretanto, mesmo tendo um direito espezinhado, confia ainda o jurisdicionado na atuação do Estado-juiz e, por isso, deixa de acionar outros meios de solução de pendências, distanciando-se, assim, à mercê de paixões condenáveis, da composição amigável. A falta de rapidez no julgamento das ações embasa-se em causas que não se sustentam. Ainda hoje, encontra-se o Judiciário no rescaldo dos incêndios advindos dos diversos planos econômicos. Nos últimos trinta anos, foram mais de uma dúzia, todos voltados ao combate ao mal maior, a inflação. Elaborados a partir da ênfase no aspecto econômico, sem submissão cuidadosa ao rigor técnico-jurídico, tais planos menosprezaram situações constituídas, direitos integrados ao patrimônio dos cidadãos, sem falar-se na instabilidade normativa gerada por cada qual deles e, também, no enxugamento do mercado. Não mais se tem a inflação em dois dígitos, ante o êxito, sob o ângulo econômico-financeiro, do Plano Real, nascido nos idos de 1993.


Os processos ajuizados tendem a se extinguir, e, aí, esses quase dez anos transcorridos consubstanciam intervalo considerável de estabilidade, a sugerir a inexistência de outras tantas ações.


É certo que alguns fatores persistem, dificultando a entrega da prestação jurisdicional em tempo hábil, a prolação da sentença final em período norteado pela razoabilidade. Citem-se, para exemplificar, o descompasso entre órgãos julgadores e população, a falta de um crivo rigoroso na tramitação do processo legislativo, a ausente independência técnica, por vezes, do profissional da advocacia, especialmente na área do Estado, a instabilidade normativa decorrente desse instrumental de mil facetas que é a medida provisória e, por último, a exclusão de alguns brasileiros do processo de produção, entre os quais a chamada força jovem, que ano a ano chega ao mercado e nele não consegue o espaço necessário a garantir a própria subsistência, a plena realização, a almejada e digna colaboração com a comunidade. Não obstante, a época é de evolução. O Estado, não estando mais às voltas com a estabilidade da moeda, tende a preocupar-se com o social, em face, até, do aumento da delinqüência urbana. Dia a dia, busca-se o aprimoramento da máquina judiciária, introduzindo-se formas desburocratizadas de atuação do Estado-juiz, como vem ocorrendo com os Juizados Especiais. Sob o ângulo das leis, cresce a atenção dada aos anseios da sociedade, à necessidade de prevalecer, sempre, as balizas maiores do Estado Democrático de Direito, os ditames da Constituição Federal, que a todos, indistintamente, submete. Por outro lado, os advogados agem, mais e mais, norteados, a cada passo, pela ética processual, restando ultrapassados aqueles reprováveis procedimentos nos quais o processo era utilizado como meio para projetar no tempo o deslinde final da controvérsia. Agora mesmo, exemplo marcante é notado no Supremo Tribunal Federal. A Advocacia-Geral da União e a Caixa Econômica Federal vêm fazendo mutirão para selecionar, entre cerca de trinta mil processos que aguardam autuação e distribuição, os que versam sobre matérias já pacificadas e que, assim, persistem em virtude de recurso impossível de frutificar. O resultado desse esforço é surpreendente. A percentagem de processos a contrariarem a ordem natural das coisas, de processos com medida recursal hoje protelatória, é de sessenta por cento. A formulação de pedidos de desistência do recurso inaugura uma nova fase, na qual o profissional do Direito adota postura exemplar, sem o receio de vir a sofrer com a maledicência, como se cooptado houvesse sido pela parte contrária.


Quanto à fúria normatizadora, a disciplina da medida provisória revestiu-se de cunho pedagógico, servindo de freio inibidor a obrigatoriedade de exame pelo Congresso, sob pena de ter-se o prejuízo da pauta. Aliás, é preciso aprender-se, vez por todas, que a vida gregária pressupõe regras estáveis e, portanto, duradouras, abandonando-se o vezo de acreditar-se na edição de leis como meio de avançar-se, alcançando-se dias melhores. O Brasil não precisa de novos diplomas legais, mas de homens que observem os existentes. O entulho legislativo é causa de insegurança jurídica, não devendo ser ainda mais exacerbado.


Por último, merece atenção o mercado, de há muito desequilibrado, com oferta excessiva de mão-de-obra e escassez de empregos, o que é péssimo, porquanto, além de levar à frustração do homem, impedindo-o de realizar-se e de ser útil ao semelhante, contribui com a injustiça social, o aumento das desigualdades e a manutenção do estado de pobreza que hoje atinge cinqüenta milhões de brasileiros. Impõe-se a retomada de projetos ligados ao desenvolvimento, e isso vem sendo percebido por aqueles que se apresentam como pré-candidatos nas eleições de outubro vindouro. Oxalá as promessas de campanha deixem de ser simples acenos interesseiros e se mostrem autêntico compromisso a ser honrado no desempenho dos mandatos, procedendo-se à obra tão esperada pelos brasileiros.


MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO é Presidente do Supremo Tribunal Federal e egresso da Justiça do Trabalho.

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