Discurso do presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, no seminário “20 Anos da Constituição Cidadã”
Leia a íntegra do discurso do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, na cerimônia de abertura do seminário "20 Anos da Constituição Cidadã", realizado no Auditório Nereu Ramos, da Câmara dos Deputados, no dia 10 de junho de 2008.
"Eminente Presidente da Câmara dos Deputados Arlindo Chinaglia, eminente Presidente do Senado Federal Garibaldi Alves, Excelentíssimo Senhor Vice-Presidente da República José Alencar, Eminente ex-Senador, ex-Presidente do Congresso e Vice-Presidente da Assembléia Constituinte, hoje Deputado Mauro Benevides, Senhores Parlamentares, Senadores e Deputados Federais aqui presentes, ex-Deputados Constituintes, Senhoras e Senhores.
Inicialmente gostaria de destacar o papel do Congresso Nacional no processo de redemocratização que consolida no processo constituinte. Temos falado – Presidente Chinaglia e Presidente Garibaldi – na luta que se travou no Brasil todo, nos companheiros de armas, e, às vezes, temos esquecido os companheiros da luta pela via democrática.
Fui estudante na Universidade de Brasília nos anos de 75 a 78, e lembro-me da importância desta Casa na luta política. Este passado tem sido olvidado; creio que é o momento de resgatá-lo.
É preciso falar na importância da luta Parlamentar e relembrar nomes que aqui já foram lembrados: Ulisses Guimarães, Franco Montoro, Paulo Brossard. Todos nós, que fomos estudantes nessa época, certamente ainda guardamos na retina aquelas memoráveis sessões que se faziam no Senado Federal para ouvir Paulo Brossard, para ouvir Marcos Freire. Nós, estudantes, nos encantávamos com Lysâneas Maciel, nomes que estão esquecidos da nossa História. Pessoas que fizeram a luta institucional para o resgate da Democracia, num momento extremamente singular, que valoriza o Congresso Nacional, que valoriza a via Parlamentar, que valoriza a via Democrática. É preciso destacar isto.
Não se pode esquecer pessoas da situação, e da oposição, que travaram o diálogo democrático. Lembro-me do debate travado entre Paulo Brossard e Jarbas Passarinho naquela época. Petrônio Portela. E é preciso relembrar o papel da sociedade civil tão destacado por aquela notável figura de Raymundo Faoro.
É preciso, portanto, neste momento, Senhor Presidente, que nós resgatemos essas pessoas que caem no oblívio, que caem no olvido e que travaram um papel, talvez um papel decisivo, como agora foi lembrado pelo Senador Mauro Benevides, ele mesmo um dos protagonistas dessa cena, como já relembrado pelo Eminente Presidente Garibaldi.
Portanto, que essas sejam as minhas primeiras palavras: lembrar aqueles que travaram a luta política dentro das vias democráticas.
Ao fazermos um balanço dos fatos que conformaram a nossa vida constitucional nestes últimos 20 anos, temos um inegável saldo positivo. Vivenciamos o mais longo período – como não me canso de destacar – de estabilidade institucional de nossa história republicana. Em termos de tradição democrática, temos algo de relevante a comemorar.
Sabe-se que, antes do advento da Constituição de 1988, o desenvolvimento institucional do País passou por instabilidades e turbulências que, não raras vezes, obstaram a prática democrática.
No período republicano, iniciado em 1889, a experiência democrática brasileira sofreu sucessivas interrupções. A Velha República foi marcada por significativos fatores de desestabilização política. A “política dos governadores”, o “coronelismo” e “as degolas” – que singularizaram esta época da história brasileira – foram determinantes para que o processo eleitoral sofresse inúmeras contestações. A Constituição de 1891 teve sua vigência cessada com a chamada Revolução de 1930, que se realizou, como todos sabem, em nome, dentre outras causas, da verdade eleitoral.
Essa Constituição ou esse movimento foi institucionalizado em 1934; e, já em 1937, essa Constituição foi superada pela chamada Constituição Polaca, porque inspirada na Carta do General Pilsudski da Polônia.
O governo ditatorial duraria até 1945, ano em que Vargas, acuado pelo clima de redemocratização, baixou a Lei Constitucional n° 9, que previa eleições diretas para Presidente da República, Governadores de Estado e para o Congresso Nacional.
O restabelecimento da normalidade institucional sofreria significativas alterações já em meados da década de 1950 e início dos anos 60. Com os tumultos institucionais que antecederam a posse de Juscelino na Presidência (1955), a ordem constitucional de 1946 conseguiu regular nossa vida institucional até 1961, quando adveio a renúncia do Presidente Jânio Quadros.
A posse do vice-presidente foi antecedida, como se sabe, por alteração na nossa forma de Governo (do presidencialismo para o parlamentarismo). Em seguida, nova mudança, decorrente de um plebiscito: do parlamentarismo ao presidencialismo, em 1963, com a aprovação de 82,25% da população.
Com todas essas distorções, referida ordem teve sua vigência cessada em 1964, com o advento do Governo Militar. O regime autoritário estendeu-se, de forma inequívoca, até 1985.
A Constituição de 1988, aprovada num contexto econômico e social difícil, faz clara opção pela democracia e sonora declaração em favor da superação das desigualdades sociais e regionais.
E aqui já foi dito, especialmente pelo Presidente Garibaldi, que se trata de um texto analítico, que se trata de um texto detalhado, que integra ou procurou integrar as mais diversas expectativas e que, por isso, deu ensejo a sucessivas alterações.
Eu me lembro que o caríssimo Senador Marco Maciel, certa feita, me contava um episódio por ele vivenciado já no final do processo constituinte, descrevendo um pouco esse quadro aqui referido pelo eminente Presidente Garibaldi.
Dizia o Senador Marco Maciel que, já no momento final do processo constituinte, teve que sair do Congresso Nacional para ir até o Ministério da Justiça; e, diante do retardo do seu motorista, tomou um táxi. E o taxista, então, procurou entabular com ele uma conversa que envolvia uma análise do processo constituinte. E disse, então, o taxista ao Senador:
– Senador, esta Constituição – cujo processo de deliberação já estava na sua fase final -, está toda errada.
E o Senador quis saber por quê. E o taxista disse algo mais ou menos assim:
– Esta Constituição está tratando de todo mundo, do índio, do garimpeiro e do seringueiro, mas ainda não tratou do taxista.
Era a percepção do homem comum de que o texto albergava as mais diversas pretensões e que, certamente, daria ensejo a modificações, como já foi destacado aqui. O chamado “fenômeno do emendismo constitucional”, que é fruto do modelo de analitismo constitucional que nós trilhamos.
E a Constituição de 1988 abre-nos, nesse sentido, um espaço para “um quantum de utopia”, na medida em que, ao incorporar tanto o “princípio-responsabilidade” (Hans Jonas) – fala-se hoje, inclusive, na idéia da Lei de Responsabilidade Fiscal – como o “princípio-esperança” (Ernst Bloch), permite que nossa evolução constitucional ocorra entre a ratio e a emotio .
Por viver emsalas de aula muitas vezes sou perguntado por alunos sobre o nosso modelo constitucional; e muitos timbram, a partir da própria doutrina, por mirar num modelo americano, esquecendo que se trata também de um processo singular, e apontam os nossos déficits. É preciso apontar as nossas virtudes.
Alguém diz, por exemplo: o texto constitucional deveria conter uma regulação sobre salário-mínimo? O texto constitucional deveria ter uma regra sobre salário-mínimo para os pensionistas da Previdência Social? Certamente o interlocutor que faz essa pergunta já espera a resposta negativa; e eu digo: – Deveria, porque o texto constitucional deve espelhar a sociedade para a qual ele pretende ter regulação e vigência. Nesse caso, entre nós, trata-se de um direito fundamental, ligado à idéia da dignidade da pessoa humana. É preciso ter essa visão.
Por isso que não se pode considerar falhas essas ausências ou regulações detalhadas. Na verdade, trata-se de uma Constituição adequada para o Brasil, País marcado por tantas desigualdades.
Digo eu, então: Apesar de seu inegável caráter analítico, a Carta Política de 1988 constitui uma ordem jurídica fundamental de um processo público livre, caracterizando-se, nos termos de Häberle , como uma “constituição aberta”, que torna possível a “sociedade aberta” de Popper , ou uma “constituição suave” (mitte), no conceito de Zagrebelsky, “que permite, dentro dos limites constitucionais, tanto a espontaneidade da vida social como a competição para assumir a direção política, condições para a sobrevivência de uma sociedade pluralista e democrática” .
Os 20 anos experimentados sob a Constituição de 1988 têm demonstrado que esta Constituição tem capacidade regulatória, propiciando inclusive a alternância do poder dentro das regras do devido processo legal eleitoral.
Não é mera coincidência que a Constituição de 1988 possui um dos mais extensos catálogos de direitos e garantias fundamentais do mundo. Cuida-se de clara defesa do Estado Democrático de Direito e do equilíbrio institucional, caracterizado pelo exercício simultâneo e harmonioso do poder por diversos agentes políticos.
Nesse contexto, as conquistas alcançadas com o modelo democrático estabelecido em 1988 estimulam sua contínua expansão. E o quadro formal da democracia conta com uma vantagem específica entre nós, que é a inexistência de adversários radicais ao modelo.
Há uma crença no modelo democrático, até porque as vias democráticas de conciliação têm-se mostrado mais lucrativas que aquelas do conflito e da ruptura.
A democracia brasileira parece ter adquirido autonomia funcional, vez que todas as forças políticas relevantes aceitam– e não há outra alternativa – submeter seus interesses e valores às incertezas do jogo democrático.
É claro que há necessidade de aperfeiçoamento. Destacou, aqui, o Presidente Garibaldi a situação atual de inércia legislativa, ou de paralisia, ou de letargia legislativa compulsória, a partir do modelo hoje criado pela Emenda nº 32, do trancamento de pauta decorrente das medidas provisórias.
Esse é um desafio institucional submetido ao Congresso Nacional, que, diga-se, tem sabido resolver esses problemas. O Congresso Nacional superou, quando ninguém acreditava, a questão delicada da imunidade e indenidade parlamentar, mudando o modelo de forma radical. Aquilo que dependia de uma licença para dar seguimento ao processo passou a ser outro modelo. O Congresso agora pode suspender o processo, mas já não faz essa suspensão de imediato.
A própria Emenda nº 32, hoje tão criticada, contém soluções importantes no que concerne, especialmente, aos limites materiais para edição da medida provisória, a impossibilidade de se editar medida provisória sobre processo penal, processo civil, direito penal, lei complementar. Tudo isso é obra da Emenda nº 32, mas, é claro, como já foi observado, o modelo de trancamento de pauta, conjugado com o número de medidas provisórias, pode ter esse efeito deletério, que se vem constatando, hoje, no sentido de que o Congresso Nacional delibere sobre um novo modo, uma nova forma de lidar com essa questão sensível do processo decisório legislativo.
Dessa forma, a ocasião é de se registrar o inédito período de estabilidade democrática com a consolidação cotidiana e reiterada dos direitos dos cidadãos.
Decorridos mais de vinte anos de sua promulgação e muitas reformas subseqüentes, feitas em quadro de absoluta normalidade, é certo que a Constituição tem mantido sua capacidade regulatória, a despeito das mais diversas dificuldades.
Ressalte-se que foram mais de duas décadas de paciente aprendizado, de eficaz negociação, até a conquista lenta, mas definitiva, dos direitos básicos que certificam a existência do Estado Democrático de Direito.
E, tal como apontado, não se cuida de experiência vivida sob um clima de absoluta tranqüilidade econômica e política.
Seria muito fácil dizer que esta Constituição tem essa capacidade regulatória, exatamente porque regula um País num quadro de ascensão econômica incontornável; mas não foi essa a experiência que colhemos a partir de 1988.
Ao contrário, o País passou por dificuldades políticas e econômicas graves. Nem a inflação descontrolada e os desvarios da desordem econômica por ela causada, nem os sérios casos de corrupção no estamento político deixaram de ser equacionados dentro dos marcos institucionais mais ortodoxos, sem qualquer contestação ou reclamo relevante.
Não é pouco, principalmente se pensarmos na superação do menosprezo de outrora da comunidade internacional e da nossa própria maltratada auto-estima, diante da desconfortável situação de membro do círculo de ditaduras do Cone Sul.
O mais importante a festejar, neste momento, é a certeza de que no Brasil, nesse ponto, a história jamais haverá de se repetir, nem como farsa, sobretudo em face do inegável amadurecimento político do povo brasileiro.
Nesse contexto, refira-se – e esta é uma matéria que o Seminário certamente poderá investigar – não só ao papel singular de instituições como o Judiciário, o Ministério Público, mas também aos organismos vitais da democracia como a imprensa livre e as associações e organizações que formam a base de uma sociedade aberta e plural.
Certamente há muitas perguntas a serem feitas para se estabelecer as causas dessa estabilidade institucional. Muitos dirão que reside, talvez, na atividade do Congresso, na independência do Judiciário, no esforço cotidiano do Executivo, mas não se pode esquecer todos esses outros poderes que não são explícitos, como, por exemplo, o Ministério Público, a autonomia de polícia, a independência da imprensa, todos eles formando esse eixo complexo, essa verdadeira poliarquia responsável pelo equilíbrio institucional.
Destaque-se a importância do Judiciário independente neste modelo institucional. Em verdade, no Estado constitucional, a independência judicial é mais relevante do que o próprio catálogo de direitos fundamentais.
Conhecemos estados ditatoriais com amplos catálogos de direitos fundamentais; e conhecemos estados sem catálogos de direitos fundamentais formais, mas que respeitam o estado de direito, por conta da independência judicial.
É fundamental que valorizemos este elemento, que é uma pedra central da Constituição de 1988.
Encerrando, Senhores Presidentes da Câmara e do Senado, Senhor Vice-Presidente da República, caro Deputado Mauro Benevides, senhoras e senhores aqui presentes, não tenho dúvida de que, a partir da Carta de 1988, afiguram-se, entre nós, aquelas condições que a ciência política enuncia como pressupostos para que seja atingida a democracia plena, dentre as quais a existência de uma cultura política e de convicções democráticas.
Muito obrigado."