Íntegra da decisão do ministro Gilmar Mendes no HC 91478

24/05/2007 22:15 - Atualizado há 1 ano atrás

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 91.478-1 BAHIA
RELATOR:MIN. GILMAR MENDES
PACIENTE(S): ALEXANDRE MAIA LAGO 
IMPETRANTE(S): INÁCIO BENTO DE LOYOLA ALENCASTRO 
COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO INQ Nº 544 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado por INÁCIO BENTO DE LOYOLA ALENCASTRO, em favor de ALEXANDRE DE MAIA LAGO, em face de manutenção, após a inquirição do paciente, de prisão preventiva decretada nos autos do INQ no 544/BA pela Min. Rel. Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça (fls. 57-125).

Com relação à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a defesa, com base em uma série de precedentes deste Supremo Tribunal Federal, sustenta que:

“Como se não fosse o bastante as ilegalidades apontadas é importante trazer ao conhecimento desta corte, como é publico e notório, que TODOS os acusados que tiveram contra si decretada a prisão preventiva tiveram interrogatórios marcados para os dias 21, 22 e 23 de maio do corrente como, aliás, consta do próprio decreto prisional.

Consoante noticia o sítio do colendo Superior Tribunal de Justiça todos os acusados ouvidos até o momento tiveram a prisão preventiva revogada e estão soltos.

Sem pretender ser redundante, TODOS AQUELES QUE FORAM OUVIDOS NOS AUTOS DO INQUÉRITO POLICIAL foram postos em liberdade, exceto o paciente.

O paciente teve a sua oitiva designada para o dia 23 de maio de 2007 e, na audiência, na presença da eminente Ministra ELIANA CALMON informou do seu interesse em permanecer em silêncio, nos exatos termos do que lhe garante o art. 5°, inciso LXIII da Constituição Federal, a saber:

‘Art. 5°.

LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado (grifo nosso).’

Em razão de tal circunstância, e somente por isso, já que não há qualquer outra explicação plausível, a Ministra informou-lhe que permaneceria preso até que fosse apreciado o seu pedido de revogação de prisão, o qual foi apresentado em 18 de maio de 2007, somente após a manifestação do Ministério Público – o qual opinou contrariamente, nos termos da ata de audiência em anexo –, o que, data venia, caracteriza modo de agir totalmente divergente daquele adotado em relação aos demais acusados.

Por entender o requerente que não estão e nunca estiveram presentes às hipóteses para a decretação da medida extrema, sem quebra da reverência devida, permitem-se aviar o pedido de ORDEM DE HABEAS CORPUS, revogando-se a prisão do Paciente” – (fls. 10/11).

[…]

Não quer crer o impetrante que seu constituinte permanece sofrendo os odiosos efeitos da prisão preventiva por fazer uso de direito inalienável – o não se auto-incriminar – nos termos da Carta Magna” – (fls. 18).

Quanto à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), a inicial assevera os riscos decorrentes da permanência de constrangimento ilegal em razão da manutenção da prisão preventiva  decretada em face do ora paciente.

Para uma melhor compreensão da matéria submetida à apreciação deste STF nest writ, é pertinente transcrever trechos do termo de audiência (fls. 32-34) por meio do qual se registram as razões do indeferimento do pedido de revogação da prisão preventiva em relação ao ora paciente em sessão de inquirição realizada ontem, dia 23 de maio de 2007, às 18:20h, verbis:

“Pela MM. Juíza foi dada a palavra ao Sr. Advogado para o seu requerimento: requeiro a V. Exa. que seja apreciado o pedido de revogação da prisão o qual foi avisado no dia 18, sob protocolo n. 85408/2007, bem como invocando o princípio da isonomia, considerando que todos os outras depoentes foram liberados; que ao ora depoente, invocando seu direito constitucional de permanecer calado, seja dado tratamento igual. Pelo deferimento do pedido de revogação. Pela MM. Juíza foi dito que o pleito de relaxamento da prisão preventiva deixou de ser apreciado no dia seguinte ao do seu protocolo, em razão da designação de audiência a qual realizada hoje, não pôde se avaliada em situação da particularização da implicação do indiciado a que se refere esta ata por força do seu silêncio, sendo impossível, desta forma, materializar documentalmente a prova em áudio que consta no processo que lhe diz respeito; que desta forma, abre vista na oportunidade para que o Ministério Público Federal se manifeste sobre o pedido de relaxamento, em caráter de urgência para apreciação imediata na data de amanhã, dia 24 de maio do corrente ano. Quer esclarecer a MM Juíza que o processo encontra-se à disposição dos senhores advogados devidamente digitalizado nas peças mais importantes dos autos e que dizem respeito às imputações que pesam sobre os indiciados” – (fl. 33).

Por fim, o impetrante requer:

“Ante o exposto, estando presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, destacando-se que o requerente é primário e possui bons antecedentes e é flagrante que o paciente tem contra si decretada prisão preventiva manifestamente ilegal, de modo que se faz imperioso a concessão de sua liberdade, com amparo nos artigos 647 e 648, I, todos do Código de Processo Penal especialmente, considerando ainda a ofensa ao disposto nos artigos 186 e 312 do, também do Código de Processo Penal e, nos arts. 5o, LXIII e 93, IX, ambos da Constituição Federal, nos termos da argumentação acima expendida.

[…]

Assim, diante dos fatos e fundamentos aqui articulados, requer, LIMINARMENTE, seja revogada a prisão do paciente ALEXANDRE MAIA LAGO, DETERMINANDO-SE A IMEDIATA EXPEDIÇÃO DE CONTRA-MANDADO DE PRISÃO (ALVARÁ DE SOLTURA) EM SEU e, no mérito, requer seja confirmada a ilegalidade do decreto de prisão preventiva tirado contra o paciente […]” – (fls. 30/31).

Nesse contexto, permanecendo a prisão preventiva decretada em face do ora paciente, passo a apreciar tão-somente o pedido de medida liminar.

O Supremo Tribunal Federal tem entendido que, nos depoimentos prestados perante órgãos do Poder Judiciário, é assegurado o direito de o investigado não se incriminar (CF, art. 5o, LXIII – “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (…)”).

Essa orientação, amplamente consolidada na jurisprudência da Corte (dentre outros: HC no 83.357-DF, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 26.03.2004; HC no 79.244-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 24.03.2000), tem sido objeto de críticas da sociedade e dos meios de comunicação, no sentido de se conferir um bill of indemnity ao depoente para que ele se exima de fornecer informações imprescindíveis à regular instrução.

Caso se pretenda atribuir aos direitos individuais eficácia superior à das normas meramente programáticas, então devem–se identificar precisamente os contornos e limites de cada direito. Em outras palavras, é necessário definir a exata conformação do seu âmbito de proteção. Tal colocação já seria suficiente para realçar o papel especial conferido ao legislador, tanto na concretização de determinados direitos quanto no estabelecimento de eventuais limitações ou restrições.

Evidentemente, não só o legislador, mas também os demais órgãos estatais dotados de poderes normativos, judiciais ou administrativos cumprem uma importante tarefa na realização dos direitos fundamentais.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e sete incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.

O direito ao silêncio, que assegura a não-produção de prova contra si mesmo, constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana.

Como se sabe, na sua acepção originária conferida por nossa prática institucional, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.

A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, Günther Dürig afirma que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck, 1990, 1I 18).

Em tese, a premissa acima seria suficiente para fazer incidir, automaticamente, a essência dos direitos argüidos na impetração. E, se há justo receio de que eles estejam sendo infringidos, deve-se deferir ao paciente a necessária proteção jurídica de modo a evitar possível constrangimento.

Na espécie, tomo por decisiva a circunstância de que, com relação a todos os demais investigados, a autoridade apontada como coatora, após a inquirição de cada uma das pessoas envolvidas, revogou a prisão preventiva decretada nos autos do INQ no 544/BA.

Além dessa premissa de efetivação do princípio constitucional da isonomia, afigurar-se-ia inequívoco, pelo menos nesta sede de juízo cautelar, que a manutenção da custódia cautelar em razão do não reconhecimento do direito de o paciente isentar-se de responder às perguntas, cujas respostas possam vir a incriminá-lo, acarreta graves e irreversíveis prejuízos a direito fundamental do paciente.

De outro lado, deve-se ter em mente que não é possível esvaziar o conteúdo constitucional da importante função institucional atribuída às investigações criminais na ordem constitucional pátria. Nesse ponto, entendo que a Eminente Relatora do INQ no 544/BA possui amplos poderes para convocar sempre que necessário o ora paciente.

Ante o exposto e ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito deste writ, verifico a presença dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).

Nestes termos, defiro o pedido de medida liminar para que, até a decisão de mérito deste writ, sejam suspensos os efeitos do decreto de prisão preventiva exarado em face do ora paciente.

  Expeça-se alvará de soltura em favor do ora paciente.

Comunique-se, com urgência.

Após, abra-se vista dos autos, com urgência, ao Procurador-Geral da República (RI/STF, art. 192).

Brasília, 24 de maio de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

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